Estudando a história do pote de café
Certo dia, quando coloquei a última colher de café no coador, percebi que era a derradeira também daquele pote. Antes de abrir o outro pacote do pó, por um demasiado ímpeto de asseio, decidi lavar o pote de café com detergente, água sanitária e toda sorte de produtos que pudessem deixá-lo sem qualquer resquício de seu uso.
Mas antes, parei, hesitei e pensei. Logo que a gente sai da casa dos pais, usa as experiências do antigo - ora para segui-las, ora, quando convém, para afastá-las - como balizadora das novas decisões. Na casa dos meus pais, um pote há muito se tornou o pote de café. Transparente e com uma tampa verde, com o passar dos anos, se tornou turvo, de uma cor amarronzada, embora ainda transparecesse o seu conteúdo interno. Ainda voltando alguns anos, lembrei também do pote da casa da minha avó. Se branco por fora, a cor mais escura por dentro denunciava que há décadas aquele tinha se tornado o pote de café. O pote daqui de casa ainda não adquiriu esse status. Novo, como a experiência de morar sem os pais, é ainda apenas um pote – e não o pote de café.
Assim, dessas lembranças do tempo passado e da constatação do tempo que ainda está por vir, comecei a indagar-me: o que é e a partir de quando um simples pote se torna o pote de café de uma casa?
Não. Um pote de café não é simplesmente um pote com café. Este, sendo apenas um pote com um conteúdo, significa que é um pote qualquer, que ora é e ora deixar de ser um pote de café. E, ora sendo, ora não sendo, não guarda nada, senão a efemeridade de qualquer café. Logo, nessas condições, se vê que é ainda um pote, e não o pote de café.
O pote de café de uma casa é permanência, porque sempre de café, mas também é descontinuidade, porque o café nunca é o mesmo.
Não é nem só um e nem só outro. O pote de café é uma permanente descontinuidade.
Nos tempos de dificuldades, guarda o café mais torrado e, por isso, mais amargo, mais forte de digerir sem um doce. Nos momentos de abundância, o café mais adoçado e leve por natureza. O pote de café guarda as marcas e o aroma do que, de bom e ruim, se teve que filtrar em cada manhã em que se lutou para não o tornar novamente apenas um pote.
Um pote de café, se quiséssemos uma maior precisão, não deveria se chamar dessa forma, mas assim: “pote com tempo de café”. Primeiro, é pote, depois, só se torna “pote de café”- como dizemos - por causa do tempo.
Por isso, nada é algo sem o tempo. Ou, tudo é outra coisa com o tempo. O tempo diz não o que as coisas devem ser ou comportam em determinado momento, mas o que, de fato, se tornaram. Quando, então, o pote se torna pote de café? Quando tem não apenas café, mas o tempo acumulado.
Nas redes sociais circula uma foto de uma senhora paupérrima coando café. A foto desafia quem a vê com uma frase: “Você tomaria o café coado por esta humilde senhora?” Não creio que seja algo superficial.
Quando se vai na casa de alguém e se toma um café, isto é profundo: você está bebendo as lutas, as perdas, os acertos, a solidão, a sorte, a coragem e as angústias daquela pessoa. Em outras palavras, o tempo acumulado.
Fechei a torneira, guardei o detergente, abri o pacote e despejei o pó. Quem vier aqui em casa, saiba, beberá história. Em outras palavras, o tempo, que torna um pote no pote de café.