AS PRIMEIRAS TAREFAS DA MEMÓRIA

Se as lembranças às vezes afloram ou

emergem, quase sempre são uma

tarefa, uma paciente reconstituição.

Há no sujeito plena consciência de que

está realizando uma tarefa. (BOSI,

1994, p. 39).

E não é uma tarefa simples de ser realizada, é um trabalho lento. Temos que pedir a permissão do tempo e ter humildade nos esquecimentos. A memória quase sempre não está ao nosso dispor, ela reluta em sombras e quase tudo que nos sobra são fracas reminiscências que atualizamos, desesperadamente, para não perdê-las. Talvez por isso mesmo guardemos tantos documentos e enchemos nossas gavetas e armários de registros e mais registros para lembrarmo-nos de nós mesmos.

Assim recorri às minhas memórias, lendo papéis amarelos e desbotados, forjando no lúmen do tempo frases empoeiradas de antigas estradas de terra.

Nasci em Príncipe da Beira, na margem direita do rio Guaporé, município de Costa Marques (RO), em 19 de março de 1962. O forte fora construído por Marquês de Pombal na intenção de colonizar a região Amazônica por volta de 1777. Hoje, nada mais do que ruínas, foi o que sobrou.

Sou filho de um Sargento de infantaria nascido no Piauí, e de uma mãe amazonense dedicada à família, seu nome era Ana que vem do Hebraico Hannah e do Latim Anna que significa graciosa ou cheia de graça, gosto de lembrar isso, me faz bem.

Sou o terceiro filho mais velho dos dez que compõem a família, quatro homens e seis mulheres. Meu pai fora transferido por diversas vezes em missão militar. Ainda quando criança, aos dois anos de idade, viajei para Boa Vista (RR), de onde tenho vagas recordações de lá, ou será que me contaram? Não sei, não lembro. E aos quatro anos fomos para Manaus (AM), lugar de completo esquecimento. Cheguei a Teresina (PI) aos seis anos de idade e passei a morar em uma casinha de cor branca e azul na Rua Anísio de Abreu de onde tenho boas e não tão boas lembranças, mas em consciência momentos para toda a vida.

A rua era de chão batido e formava uma pequena ladeira, quando chovia abriam-se valas, fendas por onde as águas desciam e eu as aproveitava. Até parece que nasci ali, é o que tenho na cabeça. Foi nessa casinha onde aprendi a ler a duras penas em uma cartilha do ABC. Uma mesinha revertida de fórmica azul celeste e quatro cadeiras ao centro da sala. Depois disso vem a lembrança de muito choro e cascudos do meu pai e bolos de palmatória, longos castigos de joelhos no chão e Dona Valquíria – a professora particular, magrinha, de vestido florido e corpo pequenininho – não perdoava erros:

– Repita, b-r-a-n bran, q-u-i qui, ...

– BRANQUINHA!

– NÃO! É branquíssima! Me dê a mão.

Não podia recusar aquele pedido. O choro era incontrolável diante da ameaça do castigo. Não havia segunda chance. A palmatória descia feito chama de fogo e o desespero batia o coração. Não conseguia entender porque estava ali, sendo surrado por uma desconhecida. Tudo que desejava era sair correndo daquele lugar, mas a porta sempre ficava fechada e a janela era alta. Avaliei muitas vezes aquela altura, mas faltava-me o dom da coragem – isso ainda me perturba nos dias de hoje. Teria que resistir a pelo menos uma hora de inquisições e castigos até chegar a hora de voltar para casa. Pronto, acabou, não.

Mais tarde quando meu pai chegava do quartel, tirava a farda verde-oliva, tomava seu banho, arrumava o bigode farto e fazia a barba – como era bom o cheiro daquela colônia –, penteava os cabelos e, algumas vezes, ele queria conferir o que havíamos aprendido na escola, então se iniciava uma nova sessão de desespero e cascudos. Não durava muito, porque a paciência dele logo acabava, dado ao cansaço do trabalho. Quanto mais cansaço pra mim era melhor.

Não me entendam mal, eu gostava muito do meu pai e o via como a um herói e gostava quando ele chagava em casa, não era carrancudo, era alegre, brincava com os filhos, era um bom pai. Ele só queria o melhor para os filhos e isso eu reconhecia muito bem. Eu só não conseguia mesmo era aprender a juntar o diabo daquelas letrinhas. No fundo, algumas vezes eu chagava a me sentir culpado por não aprender a ler. Depois, no final da tarde, íamos nos sentar na frente de casa, na calçada e ficávamos ali, os três olhando a rua, olhando... Não me lembro de um silêncio mais expressivo, mais amoroso, era tão bom ficar ali.

Leandro Dumont
Enviado por Leandro Dumont em 03/07/2021
Código do texto: T7291902
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