MEMÓRIAS - UMA LUZ CHAMADA MÃE

“As pessoas não morrem, ficam encantadas... a

gente morre é pra provar que viveu.”

(Guimarães Rosa)

A missão da memória é duvidosa porque se deixa levar pela ternura da saudade e tantas vezes a confundimos com a imaginação. De repente uma velha máquina de costura, jogada num canto da casa, já não é mais uma máquina, ela ganha uma alma, mas não qualquer alma, uma alma boa, transluzente, carinhosa, alma de mãe que diz tudo em silêncio. Falava com os olhos, com a cabeça, com o corpo lento, era uma alma do tempo que sempre existira ali. Não vestia branco, mas colorido, florido, listrado e todas as estações eram primaveras.

E em todos os tempos minha mãe não sabia costurar panos, ela só costurava sonhos, sonhos de praças, de parques, de festas, sonhos de noites enamoradas e tantos outros sonhos que nem foram sonhados. A cada pedalada acompanhada de um olhar atento e fixo, saía uma costura perfeita, como se fosse um novo caminho descoberto rumo à felicidade de um filho, de um neto, ou até mesmo de um amigo de um dos filhos. Aprendera sozinha o labor de todo o trabalho de coser: imaginava, desenhava, cortava e costurava. Mas tudo isso era só uma parte, seu dom mesmo era amar, e ajudar era seu ofício diário de mãe. Costurava... costurava e depois bordava e bordava...

De caminhar lento, era pequenininha de cabelos lisos e bem pretos, falava baixinho pra não incomodar ninguém, também não pedia favores, porque dizia ter braços e pernas pra isso. Vez ou outra pedia para um dos filhos fiar a linha na agulha, mas isso não era nenhum favor, era lição de memória para os filhos terem o que contar. E se divertia muito com as visitas dos filhos. Adorava brincar com os netinhos, empurrava carrinhos, contava histórias e se enternecia de tanto amor sentada ao chão da pequena sala. Depois caia em lágrimas na despedida, como se fosse a última vez. Sua tristeza era saudades e nunca soubera da sua dor verdadeira. Talvez não quisesse incomodar porque era simples de mais.

– Meu filho, eu leio seus pensamentos.

Isso me marcou muito. Ela estava de cabeça baixa e bordava em ponto cruz a imagem de Nossa Senhora, ou seriam flores, não tenho certeza. Mas sua voz baixinha, quase em sussurros, ecoou pela casa inteira e me fez parar de súbito. Perguntei por que ela dizia aquilo: – você sabe. Respondeu sem levantar os olhos e com tom de voz ainda mais baixo. Naquela tarde, fui até a rua e voltei para casa como se o som daquela máquina tivesse me puxado para trás. Não sei explicar aquele momento místico. Mas acreditei que guardasse poderes sobrenaturais.

– Às vezes quando vocês sentem alguma coisa eu sinto antes, mesmo bem longe. Não minta meu filho. – Pedi desculpas e entrei para o quarto, não pude mais conter o choro.

Leandro Dumont
Enviado por Leandro Dumont em 03/07/2021
Código do texto: T7291890
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