Desilusão

Engraçado. Sem meias palavras, sem muito pra dizer, porque, depois de muito ouvir, e sem entender tamanha falta de coerência, engraçado foi a única possível palavra a pronunciar. Estarrecido pelo que acabara de ouvir, era tão sem sentido e sem qualquer indicativo de que ouvira exatamente como ouvira, o fato é, ouvira. Ouvira cada sílaba, cada fonema, de cada letra, de cada palavra, daquela frase. O espanto, talvez, não fosse tanto pelo absurdo, mas por vir de quem se julgava, em tudo, e por tudo, exemplo da virtude. Mas não. Não era coerente, não previsível que alguém fosse capaz de pronunciar aquelas horrendas frases. Pensar que aquilo fosse capaz de acontecer naquele círculo de excelsas pessoas - pelo menos assim se faziam parecer -, não era plausível, não era adequado para quem se apresenta como exemplo de virtudes. Mas, para desgosto de alguns, e confirmação para outros, aconteceu. Aconteceu o que se supunha impossível. A desfaçatez, personificada naquela, que se supunha, ao menos em público, impensável, a desfaçatez se fez presente e se concretizou em carne e osso. Se apresentou com a benção dos mercadores da fé e, para jubilo da plebe, se ungiu de áurea quase sagrada.

Nada que se lhe apresentava, mesmo que por gráficos e mesmo com as sepulturas abertas aos montes, nada lhe causava a mínima comiseração. Incapaz de reconhecer o quão nefasta era sua posição, o beócio, assim como, todo beócio, incapaz, porque isento de humanidade, ainda se dignava a fazer piadas. Igualmente beócios, seus seguidores, como hienas ao redor da hiena líder, riem das piadas e frases abjetas pronunciadas por abjeto guia. Guia de uma nau que carrega, na proa desse imenso barco da morte, a efígie de Anúbis.

E assim se apresenta. Sem medida e sem qualquer apreço pelo sofrimento alheio, sem qualquer inclinação ao abraço solidário, eis que, como símbolo da capacidade que se tem de se elevar e levar ao comando de uma nação, a negação da racionalidade, o imponderável se confirmou. Se confirmou e se cristalizou, pois que, alheios ao que se entende por sentimentos humanos, jogou-se o dado no cassino . No cassino onde se aposta no alcance da degradação da vida. Para esses jogadores, sem qualquer possibilidade de se auto analisar, isto é, de se olharem no espelho e se perguntarem as razões de suas apostas/ações, esses jogadores dobram suas apostas.

Dotados de espírito jogatino, sem medir os riscos de suas investidas, como a pedra que rola montanha abaixo em direção ao simples casebre, os homens do cassino ignoram os efeitos de suas apostas. São, por natureza, e certo desprezo pela vida, incubadores dos mais horrendos sentimentos. São beócios, são mentecaptos com poderio de destruição. São a ante sala da estupidez como modo de vida.

E eis que, como o deus que exige cega obediência, o ignóbil, igualmente, exige de seus sacerdotes, igualmente ignóbeis, cega pregação de sua nefasta preleção. E como o exército em direção ao campo inimigo, todos, homens e suas mulheres e suas criança, avançam e vociferam seus ódios e suas mentecaptas razões. Razões que, ao serem confrontadas com os fatos, como um castelo de areia, se desmancham e viram resquícios de tristes expressões ocas.

Engraçado. Somente isso. Engraçado, foi a única palavra dita. Depois de dizê-la, como quem, já sem algo que pudesse prendê-lo junto ao estrito círculo de amigos, o velho amigo, depois de ouvir o que cada um tinha a dizer (e todos tinham muito a dizer), engraçado que a humanidade se julgue tão superior, tão civilizada, mas permitiu que chegássemos onde estamos. Engraçado que em nossas próprias casas existam pessoas que, como os jogadores do cassino, também fizeram suas apostas. Engraçado, como os puros de espírito, os seguidores de nefastos líderes, são capazes de dizer que o que está ocorrendo são exageros, são invenções. Engraçado. Disse só isso e saiu.