Expulsos da Terra
Oiê : Uxa
Uxa: Fala, Oiê (2)
Oiê : O que voê está fazendo?
Uxa: Olhando...
Oiê: Olhando!? Olhando, o quê, Uxa?
Uxa: O rio...
Oiê : Olhando o rio, pra quê,você tá olhando o rio?
Uxa: Você reparou que o rio não tem mais curva, Oiê?
Oiê: Curva? É mesmo, Uxa, não tem mais curva, que acontenceu?
Uxa: Não sei, Oiê. Mas que não tem mais curva, não tem; estranho...
Oiê: Estranho, mesmo, Uxa . xiii Uxa...olha, olha?
Uxa: Que foi, Oiê?
Oiê: Você não tá vendo...?
Uxa: O quê, vendo o quê, Oiê?
Oiê: A árvore, a árvore também não tá mais ... (aponta para a direção onde havia a árvore)
Uxa: Também sumiu, Oiê
Oiê: É, sumiu, Uxa
Uxa: Estranho, isso, Oiê: sumiu a curva do rio, a árvore...(toca, levemente no braço, do outro ) Escuta, escuta... (som de música, saindo de caixa de som)
Oiê: Que som é esse, Uxa? Não é de pássaro!
Uxa: Não, não é de pássaro. Estranho, pássaro também sumiu, não canta mais.
Oiê: É...pássaro também sumiu, não canta mais. Agora tem esse barulho... (tapa os ouvidos)
Uxa: Pássaro sumiu. Agora é essa, essa...nem sei, Oiê, como chama isso ?
Oiê: Sei não, Uxa. Eu gostava do canto dos pássaros. C Lembra do Uirapuru?
Uxa: Ô, se lembro! Dava gosto de ouvir. (fica um pouco em silêncio, pensativo...)
Oiê: ... canto bonito. Quando o danado aparecia, a bicharada parecia que não queria saber de mais nada. Ficava tudo em silêncio, só pra ouvir o Uirapuru....
Uxa: Era bonito, mesmo. Na mata não se ouvia um tiquinho de nada, nada, tudo silêncio. Parecia que o Espírito da Mata, sem deixar que a gente e os animais e as plantas vejam, para tudo; silêncio. Só o Uirapuru ( ao longe, se ouve o canto do Uirapuru), que coisa mais bonita...o danado só canta um vez por ano, mas quando canta, ah... é um acontecimento, tão bonito que é.
Oiê: É mesmo. Lindo demais...Uxa! Uxa! ali, ali, ficava o rio. O rio de Iara. Não tem mais rio de Iara. Não tem, Uxa.
Uxa: É, Oiê, não tem mais rio, não tem mais Iara. Nem Boto, nem Pirarucu, acabou tudo. Oiê, é triste ver que não mais Uirapuru, não tem mais Boto, Iara, Pirarucu, é triste, muito triste, você não acha, Oiê?
Oiê: Muito triste, Uxa. Muito triste não ter mais rio, Boto, Pirarucu. Muito triste, Oiê. Anacã, Oiê, Anacã, o tuxaua, antes de partir, você lembra, antes de partir, Anacã, disse pra nossa gente andar unida. Disse pra nunca se separar, que se separar, o homem branco, o homem da serra, da serra que corta árvore, que derruba floresta, que não gosta da mata, vem e derruba tudo. E nós, Oiê, vamos ficar doente, sem mata, sem rio, sem bicho e sem peixe, vamos ficar doente, Oiê. Voce, lembra, Oiê? Lembra da nossa aldeia?
Oiê: Lembro sim, Uxa. Você lembra, Uxa, como era a casa dos homens, o baíto?
Uxa: Lembro pouco, Oiê. Lembro que a aldeia tinha a forma de uma grande roda de carroça. Que era formada de um círculo de casas rodeado por duas ruas. Uma que passava pela frente das casas, a rua de dentro, e outra, que passava por trás, a rua de fora. No centro, no meio do círculo, ficava o baíto, a casa dos homens, onde iam dar as trilhas que saiam de cada casa. Mas...
Oiê: Mas...mas o quê? Diga, Uxa.
Uxa: Não sei, Oiê. Não sei direito, mas, quando Anacã, o ancião, resolveu que não queria mais pertencer ao mundo dos vivos, dos vivos de carne e osso, mas vivo, no espírito da aldeia, pensei, sem saber direito, o que era viver no espírito da aldeia. Sabe, Oiê, ainda tenho na lembrança, eu era menino, mas lembro, cada palavra que Anacã disse. Anacã mandou chamar toda a aldeia, homens, mulheres e crianças, todos juntos. Disse Anacã " Estou cansado, vocês sabem. Já dancei muito Coraci-Iaci. Já cantei muito maré-maré. Já comi pacu. Já bebi muito cauim. Fodi bastante. Já ri demais. Estou velho. Chegou minha hora, vou acabar. Vou deixar vocês aí, sem tuxaua. Órfãos de mim. Preciso morrer para que surja e cresça o tuxaua novo"
Oiê: É, Uxa. Também lembro. Foi bonito. Foi bonito ouvir o tuxaua falar da sua vida. Também foi bonito quando ele falou que precisava morrer para que "surja e cresça o tuxaua novo" Naquele dia, um dia bonito e triste, tudo junto. Triste, porque a gente ia ficar sem nosso tuxaua, ele ia morrer. Bonito, porque outro tuxaua ia surgir e crescer. Eu quase chorei, Uxa. Sabia que ia sentir saudade do nosso tuxaua.
Uxa: Mas hoje não tem mais. Tem só na lembrança. A floresta, os rios, os peixes, os animais, não existem mais. Nem tuxaua, tem mais. Muito triste. Muito triste não ter mais floresta, peixe, rio. Muito triste não ter mais tuxaua. Dói muito, Oiê. Dói muito não ter Iara, Boto. Dóis demais. Dóis demais não ter mais baíto. A arara-azul. Lembra da arara-azul, Oiê? você lembra, lembra quando elas passavam em revoada, tudo ficava azul como o céu. Parecia que o céu tinha caído pra perto da gente, era bonito, lembra?
Oiê: Lembro, lembro, sim. Pena que não tem mais. Tudo ficou feio, escuro, sem cor... (Oiê, passa as mãos nos olhos, boceja, está com sono)
Uxa: Oiê, Vamo dormir?
Oiê: Vamo. Será que vai chover, Uxa?
Uxa: Será? Tomara que não, Oiê, tomara, que não.
(Ouve-se buzinas e carros com seus faróis acesos)