O voo

As angústias que sentimos com mais força são justamente aquelas que as palavras não dão conta. Palavra é coisa muito leve; pousa no vento e vai embora sem deixar vestígios.

Por isso escrever: para amaciar os sentimentos duros, virar o coração do avesso e abrir novos caminhos. Sentimento mal curado deixa marcas de uma vida inteira — embora não faça sombra, não tenha espelho que reflita e não pese na balança. Sentimento pesa é no íntimo, na cama fria, na vista turva da janela quando o olhar se perde, no desamparo que se aconchega junto ao silêncio da noite.

Aos sentimentos interrompidos deram o nome de “saudade”. E a cicatriz deixada pela saudade está escondida debaixo da pele. Saudade é a palavra do invisível, do distante no tempo e no espaço, de lonjuras aléns. E saudade é assunto sério: se ficar embolada na garganta, faz secar a goela e dá nó nas tripas. Dá febre e tontura, come pelas beiradas feito cupim na madeira.

Por isso escrever: porque enquanto houver a palavra para dar conta das ausências, haverá uma saída; haverá de se dar um novo sentido ao que foi sentido. E se é mesmo verdade que a palavra vai junto com o vento, podemos também voar através do que dizemos. Expressar o que se oculta é uma maneira de alçar voo. E voar liberta.

pedro toscan
Enviado por pedro toscan em 14/06/2021
Reeditado em 26/08/2021
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