ESTRANHECIDO
ESTRANHECIDO
Quando me (re)vejo, não sei mais o que é de mim. Estranhecido de mim mesmo. Rebobino-me e as lembranças já não correspondem àquelas narrativas que pensava ler. É com as palavras que me ordeno. A semântica dos olhares que me circundam me desconserta. Saberei mesmo interpretá-la? A pragmática cotidiana retira-me a poesia, mas de vez em quando eu me permito ser louco. Ensaio um personagem que sobe ao palco e que me concede um sorriso. É a tragicomédia do tempo.
Eis-me aqui. Forjando a minh’alma como quem pede colo. Quero a reencarnação do verbo, porque minha carne fenece e tudo o mais é profano. O divino se derrama nas entrelinhas e eu me visto de conceitos para tentar ser pessoa. Fernando Pessoa que o diga: “Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.” Entretanto, diferentemente dele, não estou vencido, porque não sei a verdade. Porém sei que lucidez demais é loucura. “Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!”
E aqui eu me misturo a uma multiplicidade de conceitos, podendo ser sucinto. Mas quero ser verborrágico – porque é nas entranhas que os quilômetros percorrem a humanidade. Amigos me esperam. Mas eu não os tenho, porque não me tenho. Ah, aquele beijo na nuca nunca me desceu a alma. Eu só queria estar abraçado naquele beijo que, por instantes, me representou alforria. Agora escravizado, vou me render? Você confundiu amor perpétuo com prisão. Seu corpo materno finalizou aquele ritual. Fui expulso do útero. Arrancaram-lhe o seio. Receio ficou. Seu ventre fincou a cicatriz no meu sexo.
Com uma das mãos encostada à boca, saí. Já não as sinto atravessando o meu tronco. E seus cabelos não deslizam no meu tato. É fato que nem Deus conhece, porque tudo arde. Tudo é tarde e tudo fenece na despedida. Como é incomensurável o vínculo que se apodera dos nossos corpos. Eu menino tornado adulto. Eu adulto transtornado em usufruto. Esta é uma festa para a qual não fui convidado. Por isso retiro meus trajes juvenis e mergulho na íntima idade.
Foi o relógio que ceifou o encantamento. Meu último aceno, ciranda no vento. Sou um mirante que não sabe mirar. Como voltar? Presto-me a tudo que é linguagem na tentativa de me comunicar com o transcendental. No entanto, é no ordinário da vida o encontro com o recém-nascido milagre.
E assim, rompendo muros, toco a realidade construída com a fantasia, a poesia, e tudo mais que me faça ser pessoa. Que me torne gente, saindo da indigência do prático e objetivo desmundo. Salto agora. Esta é a minha parada. É a minha estação, mas não estaciono.