BARRO SEM SONHOS

O jarro de barro sua sobre o criado mudo, e a prancheta que ocasionalmente uso para desenhar permanece abandonada no canto da porta.

Os caros e finos papéis de algodão alemão, e as também caras canetas nanquim japonesas espalham-se abandonadas, aleatórias, como testemunha natimorta da ânsia passageira de voltar a desenhar.

Abandonei tudo de mansinho, deixando que as vontades de refazer fossem aos poucos minguando em si mesmas, como conta-gotas de procrastinação e tibieza fluíssem nos minutos em que não agi.

Entreguei-me há tempos à estagnação. Tenho vivido como observador indiferente de mim mesmo. Vivo no limite da apatia e da auto-observação. Talvez sejam meras desculpas para nada fazer, que não seja deixar-se quieto, sem anseios, sem desejos, sem ambições.

Os raros sentimentos que visitavam-me no passado cederam vozes a emoções espúrias, densas, que malmente chegam e se vão com a mesma lentidão de serem débeis e frágeis.

Às vezes a voz do nada ressoa nos escaninhos de minha mente sem sonhos, como se se identificassem com as horas ociosas da procrastinação que insisto em cultivar, não que a queira por companheira, porém mais por identificação com minhas cobardias.

A ociosidade não criativa, esse adormecer voluntário revela apenas o caráter insignificante de um Espírito imperfeito e vil.

Uma ansiedade que nunca me fora companheira no passado, agora visita-me em horas desatentas, insinuando-se como saldo ou resquícios de minha dificuldade em amar ou dedicar-me lucidamente a outra pessoa ou ideal.

Afastei nesta reles existência a possibilidade do Amor, com uma imaturidade sem lucidez e um denodo incompreensível de que nisso pelo menos fui bom.

Superou-me o ego adoentado de marcas multifacetadas de infância abandonada por merecimento, se não desta vida, o será de outra...

Estas letras não são lamentos, nem gritos de dor, nem mágoas. Nem tais comoções move-me um centímetro. Antes, trata-se apenas de se saber viver em suspenso de si mesmo, como se o autoafastamento pudesse trazer-me respostas do planos que não teço para o futuro.

É certo que também não sei onde me pus, assim como hoje me atino nunca haver traçado planos em conluio com a Vida.

Apenas deixei-me levar mansa e humildemente, e essa minha maior e única virtude: a resignação de quem atingiu aos cinquenta cego da coparticipação no cordão que se enrola de viver por querer.

Talvez tenha chegado até aqui conduzido pela compaixão de um Anjo desconhecido, que vendo-me à beira do caminho, tomou-me as mãos infantis e arrastou-me pela trilha imerecida da segurança dos que são ignorantes e seguem pobres de espírito.

O silêncio que abateu-se lá fora, espesso como as sombras das matas que rodeiam esta casa também escura, nesta noite de Mercúrio e Saturno retrógrados, despertaram em mim fantasmas adormecidos, e pasmados, sinto que acordam com o assombro de quem de repente vê-se acorrentado por demasiado tempo no tornozelo de quem não viveu com intromissão, sem impulso aparente que não seja o de envelhecer estagnado na própria indiferença.

Eles, os fantasmas e eu esquecemos onde deixamos as chaves das amarras. Sabemos agora, neste silêncio cúmplice de período sem chuvas, que estamos áridos, a Natureza e nós...

Um cão ladra ao longe. Desperto destes devaneios e do torpor de ainda não sentir nada. Não ouvir mais nada. De não viver nada...

Daniel Viveiros

Maio/2021