Novos tempos (ou, o que há por vir)
Dispa-se, ó, louca rainha abandonada. Entrega-te, como o cordeiro ao sacrifício, e, sem pedido de perdão, sob a noite escura, apenas um facho de luz ao longe, entrega-te. Quem sabe, posto que ao carrasco se concede o último perdão, e antes que se arme o patíbulo, pode a rainha, despida de toda sua realeza, ela, louca, como tantas e tantos outros condenados, tenha, ainda que sem os méritos exigidos, a benevolência do mesmo carrasco que, por ordem direta desta que em breve encontrará àquele que executará o édito condenatório, a outros negou o perdão salvador.
E eis que a praça está cheia. Nas tabernas, homens brutos, em toda sua bruteza, sem qualquer noção de justiça, apenas se comprazem em apostar se o carrasco dará ou não o perdão que a autoridade lhe confere. Tudo regado a gordas porções de torresmo e pernil - sem cerimônia, sem o mínimo sinal de alguma educação, sem marcas de alguma civilidade .Tudo bebido a profundos goles da mais pura cachaça. Esses homens e suas nefastas escolhas; homens sujos e fedidos, abandonados por suas mulheres porque sujos e fedidos. Todos bebem e arrotam seus excessos como quem, como donos do mundo, não precisam dar explicações. Fazem de suas ásperas maneiras, reproduzidas, para orgulho próprio, - e vergonha da mãe que sofre calada a incômoda herança que os filhos herdarão - a marca da miséria estampada nos infantis rostos famélicos. A praça está cheia. Vai começar, alguém grita. Silêncio.
O minuto seguinte, como se a matemática do tempo, como um ente autônomo e sem a mínima possibilidade de controle, o minuto seguinte parece, como se aprisionado na lâmpada do gênio, se esticar, lento e preguiçosamente. Todos, homens, mulheres e crianças e velhos, cada qual, sem se importarem com o que a de vir, curiosos esperam. Calados e em silêncio, esperam. A praça está cheia. No horizonte, sem saberem que são esperadas, pesadas nuvens se avolumam como o gordo se empanturra e avoluma sua obesidade; sua doentia obesidade. Ninguém, mesmo que reconheça as possibilidade de enchente e a certeza da perda do pouco que têm, ninguém, como se aquilo fosse o último espetáculo da terra, ousa deixar a praça. Naquele momento, como no Coliseu, o grande espetáculo, mesmo que insignificante em comparação com os jogos de gladiadores, o grande espetáculo traz o magma do sangue. E eis que, sem nenhuma etiqueta, sem nenhuma deferência, todos sabem, a louca rainha estará ali, em silêncio ou suplício, ninguém se arrisca, mas estará para o julgamento final.
Um minuto. Um longo e esperado minuto separa a plebe - e suas idiossincrasias - da realeza e suas nefandas e execráveis dinastias. Todos sabem e esperam para ver a soberba rainha. A soberba que, há pouco tempo, por capricho e sem qualquer respeito pela vida, a soberba personificada, como se nada mais, nenhuma vida, de criança ou velho, tivesse qualquer valor. Lá estará ela, infame em toda sua existência, infame como o deus Tânatos, naquele cadafalso, que noutros tempos, tempos ainda presentes nas memórias da plebe, exibiu o balançar dos condenados. Um minuto. Um longo e exaustivo minuto. Ninguém desiste. Todos esperam. Todos aguardam ansiosos, como o pai na ante -sala do parto, para verem, com os próprios olhos, tristes olhos, vermelhos olhos de noites mal dormidas, para verem a louca rainha. Um minuto. Longo minuto. E eis que ela aparece. Em toda sua realeza e soberba, ela aparece. Silêncio. Apenas o som do vento. Apenas e somente o vento ousa romper o silêncio. O silêncio surdo da longa espera. O silêncio temido da chegada do exército na pacata vila. Na pacata vila, que espera e sabe que nada será poupado. E eis que ela, rainha louca, despida de sua áurea de mãe monarca, porém, soberba no olhar, avança e passa por detrás do cadafalso. Silêncio. O carrasco em gestos quase cerimoniais, solenes, recebe àquela que diante dele, sem a Coroa lustrosa, com o olhar, soberbo olhar, nada diz. Ali estão, a rainha e o carrasco. Dois seres separados desde que seus pulmões deram os primeiros sinais vitais e suas garganta os primeiros gritos. Dois seres desconhecidos um do outro. Ali estão. O carrasco e a rainha. O carrasco, a rainha e a corda. O encontro fatal. O encontro sempre adiado porque impossível de acontecer. Mas aconteceu. O carrasco, a rainha e a corda. O trio, no mesmo impensável espaço. Ali estão. Um minuto. Um longo minuto.Os três: o carrasco, a rainha e a corda. Um minuto. Um minuto.O carrasco e a rainha. Um segundo. O carrasco. E na planaltina, outrora o centro dos horrendos desfiles da rainha e sua corte, o silêncio, como presságio que se anuncia o inesperado, o silêncio se rompe: a poucos metros dali, um grito, cortante como a navalha sobre a carne, denuncia o esconderijo do covarde rei. E eis que, como se soubessem dos horrores causados, o céu escureceu porque pesadas nuvens, gordas, - como o gordo empanturrado na sua obesidade - derramou suas águas sobre a cidade, a bela cidade que se desfigurou e se perdeu em vileza.