CONTINUO SEM LIBERDADE
Quando criança tinha que ir aos lugares que meus pais iam, mesmo que não quisesse. Não tinha liberdade para escolher. No entanto isso não quer dizer que não tinha capacidade para escolher. Quantas vezes minha mãe mandava eu me arrumar para ir à igreja, por exemplo, e eu dizia pra ela que queria ficar em casa. Capacidade para escolher eu tinha, só não tinha liberdade para escolher o que queria. Capacidade de escolha é algo inato no ser humano, pois somos seletivos. Esta seletividade, entre outras capacidades, é que nos capacitou a construirmo-nos como humanos, ou seja, os processos de hominização e de humanização, que ocorreram concomitantemente, são resultados, dentre outras coisas, da capacidade que temos para selecionar e escolher. O que acontecia comigo no âmbito familiar também aconteceu no âmbito de outras instituições. Na época, a mais de trinta anos, havia três instituições que regiam inexoravelmente as nossas vidas: família, igreja e escola. Na família, os costumes. Na igreja, Deus. Na escola, a cartilha. Não havia liberdade para escolher. Os costumes eram impostos. Deus era imposto. O ensino era imposto. Impostores! Todas estas imposições participaram ativamente da nossa construção como humanos. Somos o que somos, fazemos o que fazemos, pensamos o que pensamos, selecionamos o que selecionamos, escolhemos o que escolhemos... Opa! Se nossas escolhas são baseadas nas nossas experiências objetivas e subjetivas a capacidade para escolher permanece, mas a liberdade para escolher não existe...? Se a seleção antecede a escolha, significa dizer que ao escolher algo este algo já havia sido subjetivamente selecionado? Minha liberdade de escolha não passa de uma liberdade cerceada pelas minhas experiências... O que é liberdade, então? Não sei. Mas sei que a palavra heresia significa, etimologicamente, “capacidade para escolher”, simplesmente isso, no entanto a Igreja sequestrou seu significado original dando-lhe uma aura religiosa de “não aceitar as normas da Igreja”, e herege passou a ser todo aquele e aquela que contrariasse ou não aceitasse as doutrinas do cristianismo. As pessoas continuaram a ter capacidade para escolher, só não tinham liberdade para tal. Todas as nossas seleções e escolhas são determinadas pelas instituições, visto que não nascemos em ambientes neutros. Nascemos em determinada sociedade com sua cultura, seus costumes, suas normas e com uma maneira peculiar de enxergar e compreender o mundo. O mundo que vemos é o mundo de nossos pais e romper com esse mundo nos causa medo. Talvez liberdade seja não ter medo... Tenho capacidade para escolher, no entanto tenho medo de escolher o desconhecido. Mesmo sendo herege continuo sem liberdade.