"Sobre o que eu jamais queria ter escrito"

Os cabelos brancos: sabedoria.

As rugas: vivência.

Os anos: experiência.

Coração de vó: amor.

Não tenho mais pressa alguma. Não há lugar onde eu queira chegar. Não agora. Não preciso da área de cobertura. Não pode atender a única pessoa pra quem eu queria ligar. A falta de ar não é asma. A dor não alivia com paracetamol. As lembranças machucam, mas é viciante lembrar. Ontem foi o pior dia. E já foram praticamente 26 anos de 365 dias cada. Que saudade. Saudade que custava R$4,70. Agora custa mais que um oceano. Custa o ontem, o amanhã e o resto da vida junto com todas as coisas que eu não pude falar. Todas as novidades que eu não contei, que ficaram pro final de semana que vem, e agora pra nunca mais. Foram 25 anos criado debaixo daquelas asas e agora fica difícil voar. Falta pouco pra esse aniversário e meu presente seria ter ela presente, mas tem coisas que a gente não pode escolher ganhar.

Dizem que quando a gente morre passa rapidamente um filme da nossa vida inteira diante dos nossos olhos. E pra quem fica acontece quase a mesma coisa, porém esse feito apenas de momentos vividos com aquela pessoa. Minha videoteca é infinita. O dia das compras do mês. Miojo e suco de maçã. Cada "boa noite" antes de dormir no tempo em que moramos juntos ou por telefone. O almoço me esperando pronto na mesa posta depois da escola. Subir na árvore e colher fruta do pé. Doce no fogão a lenha. Chimarrão. Não havia o que não pudesse ser feito pra agradar. Ela ocupava todo o tempo do dia se doando pra alguém. Tricotando, costurando, cozinhando, pra lá, pra cá, a última a sentar à mesa, a primeira a levantar da cama. Todo o aprendizado que deixou de herança. A voz inconfundível: "Pablito, toma um nescauzinho pelo menos". E quando a gente ia embora ela ficava no portão nos olhando e acenando até sumir. Um dia foi o último café da tarde, o último telefonema, e a gente nem se deu conta. A última vez que me mandou por um casaquinho e eu respondi: "mas vó no sol tá calor" e fiquei gripado menos de uma semana depois. Um dia foi a última vez que me acenou e eu olhei de volta, sorri e avistei aquele sorriso tão doce preso no corpo dono do abraço onde pra sempre eu vou me abrigar.

Já chorei rios. Desidratei. Porém certos buracos não foram feitos pra tapar. Saudade não é ausência, é presença e ocupa espaço. Conforme o tempo passar, vou redecorando de momentos bons que pra vida toda vou levar comigo, uma coleção de dias, conversas, abraços, agrados, tem vestígios espalhados por todo o caminho, caixas e arquivos, nomeados, datados, eternizados pra nós. A gente até já se desentendeu, mas não valia cumprir a pena de passar um dia sequer de mal. E pode a poeira baixar, quando eu menos esperar, distraído por aí, fitando o céu, aquele cisco vai cair e eu não ei de hesitar em derramar uma lágrima de saudosismo, de aperto, pois a lembrança sim é a última que morre. Não cabem em linhas o todo e o muito ainda é pouco pra descrever o que se sente, a vontade, o quanto foi de verdade. Tive sorte de descender de ti e fazer parte de tudo até aqui. Saudade é aquela visita chata de domingo que teima em não ir embora.

Esse é o texto que eu jamais queria ter escrito. Sobre todas as coisas que eu vou pra sempre lembrar.

04/04/2019

Pablo Machado
Enviado por Pablo Machado em 08/04/2021
Reeditado em 14/11/2022
Código do texto: T7226921
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