A cirúrgia do tempo
A simbiose espaço-tempo já não mapeia a existência; os dias se inverteram e vetam essa minha hiperatividade enclausurada, prestes a me causar erupção. O aquário é o único espaço e o tempo é essa água concentrada que submerge minhas direções; as memórias aqui nadam até atravessarem o vidro, e vejo que o tempo é na verdade um mar concentrado, pois ainda sinto teu frescor imenso nas marcas fossilizadas em mim.
Cronos devora tudo o que nasce, assim, destila-me por dentro e nos moldes ósseos das memórias, faz me encontrar restos de seres preservados na matéria do tempo e do convívio, ouço o zumbido de coisas tragadas ainda vivas no seio de Cronos, então levanto e fico a fitar a forma estranha de um relógio, ouço a sonoridade dele, abafada como um coração inflamado, e por conseguinte decido abri-lo para explorar as figurações que estão em coma. Começo minha cirurgia - O revestimento mecânico do relógio é tépido e amorna minhas mãos enquanto desmonto cada engrenagem, não tem anestesia, apenas a crueza da dissecação e o calor que exala de cada espessura delicada do passado; o tempo está ressequido e empalhado em mim, mas logo vejo a chuva cair e cair com mais força, expurgando o que está dentro desse relógio agora violado pelas minhas mãos tão humanas e fracas. O tempo é uma entidade que vaza para além dos ponteiros que apontam a minha desordem, está em mim e sobretudo, além de mim.
Por isso eu digo aos estrangeiros que procuram reproduzir minha forma: sou a massa que se espalha no tempo e se perde, o que fui já não sou, e enquanto falo, mil outras formas em mim, se calam, não sou feita com a matéria dos pensamentos. Atônita, remonto o relógio e fito a marcação pós-cirúrgica de uma epifania. E agora me visualizo no silêncio incisivo dos livros, são as sementes úmidas e acolhedoras da solidão, o cultivo de ser intocável.