FOME

Já não me farto como antigamente, outrora um grãozinho só locupletava-me, hoje sequer uma grande colher cheia é capaz de saciar um por cento de minha fome.

Não sei o que me ocorreu... Desde que vim para cá percebi essa diferença. Lá no meu antigo recinto costumava a ter fome mesmo apenas de luz, pois era tudo tão escuro. Quando abria-se a porta e aquela mão velha e arrogante surgia, nem queríamos saber do pequenino grão lá deixada; todos iam feito loucos para lá só para poder ter um pouquinho da graça.

Os grãos caíam no chão e cada um pegava depois, quando a porta se fechava e a luz desaparecia. Fome? Ninguém mais sentia, só se tinha fome da luz.

Mas certo dia a mão resolveu puxar-me de lá... Foi o momento mais feliz da minha vida, finalmente alcançava a idealizada apoteose: todo o corpo vestido de luz. Uma catarse da escuridão que vivi...

A condição era catar aqueles grãos que nos davam.

Todo dia eu fazia este trabalho, ganhava aquele mesmo solitário grãozinho, mas um perene sorriso enfeitava o meu rosto.

Depois de meses foi a primeira vez... tive vergonha de mim mesmo ao blasfemar contra a fonte da minha alegria. Todos almejavam a minha posição e eu reclamando... Anos se passaram e aceitei minha perdição, pois a luz já não mais me valia. Passei a sentir um vazio que nunca tinha sentido - ou pelo menos esquecido...

Desde então tenho levado mais que um daqueles grãos comigo, era o meu segredo, mas temo que um dia eu seja pego...

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 11/03/2021
Código do texto: T7204641
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