ONDE ELA ESTÁ?

Passados são os anos da infância e o infortúnio da saudade chega tão perto e, me pergunta: _ Onde ela está? Onde?!

Em silêncio eu olho para as suas mãos e, nelas, vejo que as flores não demoram para nascer - em especial; as rosas -, amarelas, vermelhas, lilás e tantas outras cores e texturas que a criatividade lhe permitia. Eram rosas feitas de organza, palha, renda, de folhas secas, jornal, folhas de revistas ou cascas de frutas - era o seu amoroso segredo - dar vida a essas flores. Não havia escravidão naquele prazer divinal e as horas se perdiam na modorras das tardes, embaladas pelo canto dos pássaros e o som estridente das cigarras. De repente, ela percebia a minha presença e, abrindo um largo sorriso, me chamava para dentro do seu maior abraço. Noutras vezes, eu a observava regando as plantas e a grande horta do quintal – ela parecia bailar, leveza típica de quem ama. Era o tempo da minha infância, o tempo da minha mãe.
É tudo que eu tenho, é tudo que eu sou. Não quero nada além e continuo andando neste quintal feito de saudade, pelos cômodos da minha lembrança, olhando os quadros pendurados nas paredes, o velho relógio carrilhão, as miniaturas de cristal, as peças de prata, os vasos, os porta-joias, os cabides de madeira, a louça portuguesa, e as grandes panelas de ferro e os tachos de bronze para as incontáveis tarde no preparo de doces. Os pequenos baús de couro que pertenceram à minha avó e traziam o silêncio dos velhos álbuns de fotografias. Os segredos da minha mãe, as dores que sangrou em silêncio pela ausência do meu pai nas grades da ditadura – e todas as suas rosas brancas pediam paz. Numa manhã de sol a paz retornou à nossa casa e relatou os dias de sua ausência ainda a tempo de acompanhar minha mãe em seu amoroso entardecer aos pés da santa confiando-lhe um pedido, infortúnio de mãe. Ela era mulher, ela era mãe, assim eu a conheci. Por anos consecutivos, eu parei diante do grande móvel de madeira escura, numa das salas da nossa casa, onde os retratos da família eram expostos aos olhos dos visitantes – cada fotografia com sua historia. Eu experimentava a necessidade de conhecê-las para poder chegar a mim mesma, antes de cair no esquecimento. Quando a luz filtrava pela fresta da cortina, eu sentia a presença de cada um deles preenchendo as rachaduras do tempo. Minha mãe, às vezes estava ao meu lado e mansamente eu sentia a sua mão em meus cabelos e entre nós não havia mais diferenças de pensar. Não sei quanto tempo se deu entre esses dias e o silenciar das mãos fazedoras de rosas. Parece que foi ontem que a vitrola ficou muda, engoliu seus LPs e, The Wall nunca mais foi ouvido. Minha mãe fez rosas negras depositando-as aos pés da santa, lavou suas mãos, guardou suas tesouras e agulhas, seus moldes, suas rendas e se recolheu em profundo pesar. Respeitamos a sua dor, meus irmãos, meu pai e eu nada dissemos, nada pedimos, aguardamos a urgência do sorriso dela, dos carinhos dela, dos olhos dela – que sofria a perda de uma filha. As flores do jardim, assim como a grande horta ficaram adormecidas. Os pardais e as cigarras silenciaram em profundo e cinza inverno. Minha mãe se calou até que a dor aquietasse seu coração, mas as rosas – nunca mais nasceram. Confesso que nunca entendi, mas também não questionei e, assim a vida nos conduziu por mais outros longos anos, até que finalmente minha mãe viajou para onde moram os anjos. Hoje, ao olhar o céu logo pela manhã, muitas nuvens brancas com formas surreais e no meio delas, uma rosa...


Para minha mãe Dª Ira
03/03/1923
11/03/1987



imagem: Minha mãe aos 30 anos
grafite sobre papel
Luciah Lopez


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