DE NOVO A PRECE

Deus não existe! Deus não existe? Ah, como gostaria de acreditar nisso. Mas sua constante ubiquidade não me deixa crer. Quando escurece, a prece. Quando amanhece a fé se desvanece. Estou divido, quebrado por dentro e por fora; o desalento, como um leão, me devora. No início, o encontro de duas atmosferas: tempestade! A euforia do novo. No final, corpos e almas dilacerados, fúnebres caminhadas, enterros. Estaticidade! A estola no pescoço, o poder, mando e desmando. A corda que segurava o corpo. O abismo cheio de pedras. A corda que enforcava o corpo. Não gosto das cordas. Não gosto das pedras. Pedras grandes servem para fechar os túmulos. Pequenas, servem para apedrejar as prostitutas, os homoafetivos, os negros, os índios, os andarilhos. Os diferentes. Achei uma pedra e a guardei comigo. Ao contrário do que esperava não lapidei a pedra, fui pela pedra lapidado. Virei pedregulho. Já levei uma pedrada, ainda pequeno, na canela. Chorei. Já levei uma pedrada, das grandes, na alma. Não chorei. Sofri calado e decepcionado. Decepção: sempre senti, quando pequeno, quando grande, quando crente, quando descrente. Quando criança, guardei uma pedra. Aprendi esse gosto sem gosto sem gosto. Joguei a pedra. Enxerguei o mundo. Joguei a pedra. O mundo é belo, as pessoas são belas, os homens amigos, as mulheres amantes, Deus tão distante, como uma rocha tão dura, se transformou em poeira. As pedras, mesmo as menores, caem, estáticas, mas a poeira... Poeira flutua. O horizonte: Empoeirado não me dá vontade de caminhar. Quando chove a poeira se desvanece, o horizonte é lindo. Lindo, longe, inalcançável! A gente corre, feito louco, corre, pra poder chegar lá com poeira ou sem poeira, mas a presença e a ausência da poeira são sempre presentes, de grego! De presente ganhei um livro que nunca entendi. Estranhas palavras não traduzidas. Estranhas palavras transliteradas. Estranhas palavras que nunca entendi, a não ser aquilo que lembrava da infância. Não guardei sequer uma frase? Guardei, sim, uma palavra: justiça. Guardei porque ela sempre aparece imponente, como uma prece. Percebi o fio da meada, compreendi que ela bastava, que o segredo era a prática, que não pratico o fio da meada. Percebi que não dá em nada… Justiça: Pra Clarice ela é contra a natureza. Falamos o tempo todo, tentamos o tempo todo fazê-la real na vida injusta. Sem êxito! Apesar da beleza permanece uma ilusão – às vezes de ótica! Por isso uso óculos e com eles enxergo melhor. Abraço as pessoas que amo e me lembro da palavra justiça – Ah, meu Deus! Sinto que ela se realiza, mas meus óculos ficam embaçados assim que o abraço termina. Com eles posso ver, ao longe, gestos de carinho e de paz. Humanidade. Sem eles posso enxergar de perto. Só enxergo no escuro as minhas lembranças, e só as piores. Para ver as melhores lembranças preciso da luz. Arrisco andar no escuro e vou tateando, trombando, xingando, até a cozinha. Bebo da água do filtro. Não bebo da água do poço. De sede não morro não! Tem gente que não bebe nenhuma das duas e come palavras, usa lanterna e espera pela vida eterna. Eternidade: É um trem sem-começo e sem-fim: a viagem acontece sem você e sem mim. De nada adianta tentar entender: Só vamos morrer. Só, vamos viver. Tantas pessoas, algumas tão próximas, outras tão íntimas, e no recôndito das nossas almas a solidão nos espreita. Espera-nos como um porteiro que não nos deixa brincar no play ground. Acho que estou no play ground e quero crescer. Crescer, para mim, tem sido difícil. Cresci, eu sei, graças aos embates com a vida e com a falta dela, e ainda não cresci por inteiro. Talvez nunca cresça: ou porque prefiro ser criança, para poder tampar o rosto com as mãos e imaginar que ninguém me vê, ou porque não consigo mesmo. A gente pensa que está grande quando as coisas tão bem. Aí, uma dor de cabeça, um filho doente, o dinheiro não dá… E a maturidade, pretensa, desaparece. “Pai! Pai! Aba! Aba!” De novo a prece.