Com Luis de Camões

Caro Senhor:

Espero ser digna da vossa licença para esta breve e intempestiva audiência.

Visto que eu, ainda sentada neste velho porto, não sei se tão seguro, porém muito bem cercado de antigas ilusões, vejo-me compelida a olhar em direção à vossa “casa marítima”. Isso faz com que meus olhos marejem e tudo comece a se misturar: lágrimas salobras daqui com águas salgadas de lá...

Por um instante, sou tomada por uma espantosa visão de naus que singram sozinhas: nem reis, nem escribas e sem o recato das rainhas. Enquanto isso, o mar espelha o poder do deus Netuno que, em assembleia com infinitas sereias, fecha a porta secreta ao traspassar a linha do horizonte. E eu, sem saber cantar um fado, sequer, adormeço com o balé das ondas que me atiram para o fundo deste mar carregado de grilhões.

Já é noite. E eu não quero me servir de coisas efêmeras que estão aquém da eternidade única que veste cada estrela. Sinto que estou à mercê do vosso Adamastor. E só agora me lembro que habito a terra de vinte e seis sóis ligados à estrela-mor, fixa no distrito pantanoso. A bem da verdade, hoje tudo difere daqueles tempos remotos, quando vossos pares escreviam, com majestosas penas lusas, que “agoas sam muitas imfimdas. E em tal maneira graciosa que querendoa aproveitar darsea neela tudo per bem das agoas que tem.”

Talvez por isso, as gaivotas acostumadas ao seu mundo de muitos mares, ora calmos, ora revoltos, conforme a vossa “procelosa tempestade”, danem a rir da minha fraqueza humana. Elas que muito sabem bailar, com invejável destreza, entre o mar e o céu, nunca se afogam aqui embaixo e jamais de lá de cima caem.

Assim, penso eu, que só vós podeis me falar, outra vez, com a linguagem do entendimento, se é que é possível entender o que as palavras pouco dizem. Perdoai-me, então, pela minha escassa inteligência e por mais esta pergunta moída e temperada com flor-de-sal:

Até onde não é o teu Adamastor simulacro da alma do “homo sapiens” que mais odeia do que ama?

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Nota:

“agoas sam muitas imfimdas. E em tal maneira graciosa que querendoa aproveitar darsea neela tudo per bem das agoas que tem.” – Do português arcaico. E equivale a: águas são muitas, infindas. E em tal maneira é graciosa (referindo-se a nossa terra) que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.

(Trecho da carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal, D. Manuel, em 1500 – época do descobrimento do Brasil).