DO MEU PRIMEIRO MAR
Era um dia de aurora da vida.
E eu...era só gente pequena, dessas gentes que não crescem nunca.
Eu ouvira dizer do mar como, nos livros de poesia, sempre se ouve falar dum ser colossal e inatingível que era preciso se navegar.
"Óh, mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal?"-bem cedo ouvi o que versejara Fernando Pessoa e fiquei curiosa.
Mar grandioso, onde nele tantos seres que viriam através e depois dele, num perene vaivém das grandes águas, ora calmas, ora turbulentas, sem horizontes navegáveis com precisão , todos rumo a beira das praias da vida, como sonhados gigantes combalidos sob marolas adsorvidas nas areias dos tempos.
Eu eu, tão gente pequena, mal sabia ser só um projeto em antítese de navegante de mar, como adiante sempre seria, frente às tantas grandezas que viriam além dele.
Quantos além- mares da vida que, graças a Deus, gente pequena não alcança seus horizontes.
Mas, como toda criança, eu sonhava grande dentro da possibilidade de gente pequena; eu imaginava, olhava e me extasiava com a magia de criatura que nada sabe; tudo via como olhos dum ser ínfimo que imagina as grandes belezas da vida como se a espiar pelos buracos das fechaduras, por onde se pode olhar e ver todos os belos segredos intangíveis do mundo...sem neles poder entrar.
Até aquele dia do meu primeiro mar eu só o havia visto com as retinas da minha imaginação.
Quando ele enfim me chegou, assim que nele coloquei os meus pezinhos incautos, lembro que senti tontura na primeira marolinha suave que em mim se findava.
A mesma tontura que gente grande sente até hoje quando tão pequenos estamos frente às imensidões que não nos pertencem.
Como é maravilhoso e assustador olhar o horizonte dum farol enorme e brilhante que, todos os dias, apenas nasce e morre lá em cima dos céus intocáveis, sobre os mares de todos os tempos.
Foi ali que, pela primeira vez ,aprendi a lição número um, quando vi o gigante me chegando em onda enorme e avassaladora se transformar em gotas d'água até sumir borbulhante nos buraquinhos da areia feitos pelos caranguejos.
Tudo em frações de segundos...
E eu ali, maravilhada gente tão franzina, numa pele de branco desbotado e desprezível, onde o azul das minhas veias delicadas se destacava no cenário dos meus pés bambos que pareciam tremer de medo de ali contrastar um início no solo arenoso das grandes caminhadas.
A brisa soprava suavemente no meu corpo pequeno e lembro que senti certo frio naquele doce carinho mareado.
Constato que, naquele dia, meu mar tão diferente do de hoje, nunca mais me seria o mesmo, fato que atribuo às emoções desprecavidas das primeiras vezes que enxergamos os sóis e seus horizontes.
Ah, sim , quase ia me esquecendo do principal: lembro que provei, sem que minha mãe me visse, uma pitada daquele sal que diziam ali existir.
Era verdade...aquilo se tratava do tempero do mundo.
Mais tarde eu constataria que é preciso haver grandes saleiros infindáveis para temperar com êxtases todos os mares das vidas.
E aqui, relembrando meu êxtase salgado, tal me remete ao alerta dado nas Escrituras: "vós sois o sal do mundo".
Não demorei muito para entender o significado desse grande ensinamento.
Lembro que a imensidão da praia, algo ainda bem virgem das atuais adversidades, parecia ser só minha, onde meu chão de flocos de areia era dum cinza firme e respeitado, onde o burburinho ecoado das ondas tinham um timbre diferente do de hoje e todas elas ressonavam suas vozes nas conchinhas que conversavam com os meus ouvidos.
Ah, quantas canções o mar me cantava, era como se todas as sereias do mundo estivessem ali, num coral hipnotizante, prontas para me pregar todas as ilusões da Terra.
Eu acreditava: haveria de tocar todo o horizonte, que jamais me pareceria uma linha finita ou intangível, porque a mim ele estava bem perto... logo ali.
Hoje, por vários motivos, os mares estão trancados, algo que minha condição de pequena gente grande ainda não consegue entender.
Trancaram os mares...acreditam nesse verso?
E com os olhos dum coração marejado eu me pergunto: Onde estariam todas as minhas conchinhas cantantes daquele meu único primeiro mar?
Bobagem.
É só uma pergunta boba, dessas de gente pequena.
Dessas gentes que não crescem nunca...