ESTAÇÕES DO CORPO

Um dia de cada vez, assim conta-se o tempo na idade provecta. Cada amanhecer não tem propósito definido, porque com a finitude mais próxima, difícil é a inquietação das noites sobre os dias. O viver da senectude é de largo espectro, mas os furacões sentimentais já não têm tanta constância nem tanta força para provocar os estragos acaso ocorrentes na juventude. Nesta etapa, quando a finitude é uma sombra, esta nasce por escrito no reino da palavra. Num mutismo que assusta o expectante a até o ator em seu ofício.

A noite é de enorme mansidão para aquele que enfrenta o saber-se vivo, em solitude. Em poucas palavras, toda aquela criatura que pensa e diz se torna amante de inconfessáveis amores. A solidão é uma delas. E é tão viril a sensação, que consome até ideias primárias para o estar no mundo.

E é aí que ressalta o papel da “lucidez enternecida”, a musa verbal ora de negro, ora de intensa luminosidade: a Poesia. Nesta, é profunda e gutural a voz da resiliência em busca de uma nesga de felicidade. Nela, e por ela, tudo vale. A poesia lírico-amorosa é esse absurdo gemido do cadinho das emoções varando os neurônios. É visceral, mesmo que intocável, como todo o sonho de/ou como sói acontecer a cada nascimento: uma estrela ou um grão de areia. A alta Poesia é uma estrelinha miúda num céu rendado de desumanidades. Um ponto de luz grávido de esperanças. Cabe ao poeta descobrir esses pontos de luz prenhes de esperanças. Vesti-los de boas novas, de densas vontades de vir a ser. Por ela, a espectral luz dos desesperados constrói o seu manto de futuros. Poetar é um singelo ato de forjar espelhos para si próprio e refleti-los para o Outro.

Nas antevésperas da finitude, a cada nascer do sol, o dia se constrói com menos naturalidade sobre a nossa pele. A boca aprende a ficar extasiada com os quadros humanos que se acumulam em nossa volta. E, pela convulsa ingestão, baba o amargo alzheimer da indiferença. O fio da vida desconcentrou-se de há muito do orvalho sobre a flor, como ocorria anteriormente. Esse é o novo: o hálito tardio das estações do corpo haurido do perpassar do tempo e das temperanças acumuladas.

A agonia dos dias finitos de temperanças baba em uníssono. Assim os véus do mal vociferam em sua úmida caverna. A palavra remói-se dúbia, quando as mãos não mais sabem afagar a pele dos afetos. Morre-se com mais viço nestes dias de pavor e inquietações. A morte liberta o radiante lume até então escondido. E a farsa da imortalidade é o único consolo.

MONCKS, Joaquim. A VERTENTE INSENSATA. Obra inédita, 2017/21.

https://www.recantodasletras.com.br/prosapoetica/7174942