[O Alpendre Cor-de-Rosa]

[Ah, os seus olhos... a sua boca sensual! Eu observava a circunvolução lúbrica de seus lábios no cigarro... E depois, bebi o veneno do desejo ao ver os seus lábios no copo de cerveja!]

Esta antiga calçada, percorrida

a passos de pedras escolhidas,

passa pelo alpendre cor-de-rosa

onde aquela moça espera

as amigas para ir ao baile.

A moça do alpendre cor-de-rosa,

o fêmeo viço da beleza juvenil

no descuido das voltas do tempo:

eu a vi — com os braços apoiados

na balaustrada de mármore branco,

e as belas mãos entrelaçadas sobressaindo

do alpendre por sobre a calçada —

eu era criança... e a beleza daquela moça,

eu pensava, devia ser eterna,

estaria ali, incorruptível, quando

eu voltasse já grande, homem feito

[eu sabia que eu ia partir].

As largas pedras da calçada

alisaram-se dos muitos passos,

e os ventos deram contra a casa...

A portinhola de vidro do nicho

da santa protetora do lar

foi abandonada entreaberta de três dedos

por alguém que foi buscar uma flor

para ofertar à santa e nunca mais voltou.

Coberta do pó do esquecimento,

a santa não mais recebe o olhar

de súplica por causas difíceis,

a vela das remissões não é mais acesa,

não há lâmpada que ilumine a santa,

tampouco existe um par de olhos úmidos

que a busque à espera de milagres!

Na casa adormecida em silêncios,

tantas foram as mortes na família,

tantas foram as histórias encerradas,

que ela se tornou o túmulo dos sonhos

dos que ali cumpriram suas existências!

E a moça da beleza eterna — onde andará?

Resta a casa de paredes descascadas,

resta o alpendre envelhecido,

resta o nicho da santa abandonada,

resta um homem que olha e também passa — eu!

E agora, neste bar, nesta noite, trinta anos depois,

e a mais de mil quilômetros de distância,

surge esta bela mulher — observo a sua mão,

os seus dedos no entorno de um copo de cerveja,

e o meu olhar retorna ao alpendre cor-de-rosa...

Meus olhos de cão faminto de desejo, de sexo,

lambem esta mão, estes lábios no copo de cerveja;

mas a minha mente insiste — não se afasta

daquela casa do alpendre cor-de-rosa!

E a imagem sensual da dona daquelas mãos

que sobressaíam da casa por sobre a calçada,

a efêmera beleza que nunca se dignou a sequer

olhar para os meus olhos de cão súplice,

torna a habitar a paisagem do meu olhar!

Como posso suportar esse constante

dilacerar das coisas, das gentes, da vida,

e sobretudo, como desarmar o passado?

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[Penas do Desterro, 11 de abril de 1998] - Poema do meu "Caderno 1"