A estrada
Quanto mais me afasto, melhor vejo as formas que antes me cercavam. Já distante, vejo as minhas culpas e não-culpas e as abraço como quem revê velhos amigos. É uma jornada de dores, mas de aceitação e crescimento pra além de mim mesmo. É hora de trocar de pele, de olhar pra dentro, de mudar.
Em caminhadas longas é comum levar apenas o necessário. Me desprendo de mágoas, de ressentimentos, de tristezas e raiva. Aos poucos vou deixando essas cargas pelo caminho, conforme percebo que não são mais necessárias.
Sigo e descubro que deveria ter cuidado mais do caminhante que agora torna-se solitário personagem da jornada. Em meus braços, vejo feridas profundas de defesa e ataque.
Num grotão a beira da estrada, paro para encher meu cantil e me refrescar da caminhada. A imagem refletida pertence a mim? Em que momento esqueci meus traços? Como fui capaz de não me enxergar? A boca seca me impede de gritar. A água não sacia minha sede.
Na noite escura e fria ouço sons que me apavoram. Ouço vozes. Familiares? Vejo a estrada que venci, mas as sombras tomam conta do adiante.
A luz existe apenas em minha lembrança e quanto mais caminho, mas a vejo resplandecente em meus pensamentos. Quantas vezes calei quando devia gritar? Quantas vezes gritei quando devia calar?
Das culpas que carregava, deixei muitas pelo caminho, algumas percebi que nem sequer eram minhas, trouxe enganado na bagagem que arrumei às pressas, mas o caminho está fechado e não é possível voltar para devolvê-las. Outras troquei por lições, curativos para as feridas que me angustiavam, e que aos poucos vão cicatrizando em meio a outras que ainda doem.
Decantam meus pensamentos. Aos poucos troco tristeza e decepção por resignada esperança e me lembro que não controlo nada além de mim mesmo, que nada me pertence senão meus sentimentos e que tudo é finito, até o caminho.
Apreensivo, faço curvas. Em coragens momentâneas, salto obstáculos. Não é uma estrada de muito tráfego, mas encontrei pegadas. Vejo instruções deixadas para trás. Algumas ignoro.
Deito-me a berma para descansar. O sono não me renova. É preciso seguir, mas por quanto tempo? O que sinto? O que quero? Quem sou?
Me pergunto se tomou caminho semelhante. Em que ponto da estrada estaria? Relembro cheiros, gostos, tatos. Alguns são desagradáveis e me embrulham o estômago, outros me roubam sorrisos discretos. Repreendo meus pensamentos. Não importa! Não me importo. Vejo o sangue escorrer da ferida que arranquei a casca.
Aos poucos o ponto de partida vai desaparecendo no horizonte atrás de mim e, como um sopro de vento frio, ganho ânimo pra seguir firme.
Me dispo das certezas, pra que a bagagem se torne ainda mais leve. Não preciso de nada. Deixo apenas uma, a de que seguirei em frente. Calço meus pés da esperança em chegar mais forte, mais sábio, mais maduro e mais eu.