Redenção
A gota goteja na pedra
Cava lentamente o buraquinho
Deforma, reforma, transforma.
A gota etílica perfura minha muralha
Vai gastando meu barranco interior,
Lapidando com seu formão incolor,
De toda cor, de todo sabor.
Eu pingo tinta azul, vermelho-morango, cassis, abacaxis e a gotinha vai virando veio.
O veio vai roendo minha muralha, rajando de açúcares, limões e pedrinhas geladas.
Vai rasgando minha sobriedade e eu vou perdendo para a ilusão gostosa e insensata. Inconsequente. Louca. Louca.
O veio vira rio, correnteza, de rum, de cana, de cevada, de inconsistência. Rasga fígado, rins, rasga minha alma que quer morrer de prazer e torpor. A chuva se dissolve no meu rio e segue o seu curso inundando minhas aldeias íntimas, formando uma paisagem interior melodramática, ideal.
Um prazer estranho se perpetua em goles e a paisagem transformada viu o líquido corroer minha muralha, gastar meu barranco e estou encharcada. Não percebi que já não tinha muros, era invadida, o barranco era queda dágua, a muralha já não limitava nada. Tudo vem. Tudo vai.
Um dia, no torpor habitual, caí de cara no chão. Os urubus vieram comer a carniça da dignidade enlutada. Cheguei na beira do meu próprio abismo, que cavei com veios alcoólicos e chuvas bêbadas, e poderia escolher naufragar nas águas viciadas do meu corpo ou voar para longe e recomeçar minha história.
O cenário bonito era todo ilusão.
Decidi voar e ao longe pude ver que a realidade pode não ser tão bonita, nem tão saborosa, mas é a ela que temos de verdade.
Vou recomeçar porque preciso e quero recomeçar.
Sem goteiras salobras, sem chuvas etílicas, sem pingos saborizados de tinta entorpecente.
Quero voar porque sou feita de brisa, romance e poesia, sou artista, sou feliz!