Sobre lutos e perdas
Luto é momento de introspecção. As lágrimas correm para dentro dos olhos e inundam a alma, vagorosamente, gota a gota, até que a dor transborda e corre pelas faces em um choro incontido, compulsivo, por vezes contagiante: o choro é tão doído que faz um estranho chorar. O luto é a modalidade mais dolorosa da perda. Perder seja o que for quase sempre dói. Entretanto o luto comporta toda a sorte de gradações. Há perdas comemoradas. Perdas esperadas. Perdas profundamente lamentadas. Perdi meu pai muito cedo. E seu substituto. E outro depois. Perdi minha mãe para os seus 17 anos. Perdi minha mãe de criação para aquela doença horrível. Perdi a inocência nas mãos de parentes insanos. Só. Chorei a adolescência toda. Me vesti de preto em luto. Contei moedas para comer. Recomecei do nada mais de uma vez. Sofri quase tudo que há para sofrer. Me fiz forte quase indestrutível. Mas há dores que não sei reverter. O luto em vida é a pior delas. A pessoa que morre para alguém e permanece viva para o mundo esculpe a obra de arte da dor. É uma perda de algo palpável. É não poder tocar o que está ao alcance de todos. É mais dolorido que perder o pai. Uma vida de choro que se renova e parece não ter fim. Uma perda sucede a outra. Perder em vida é algo evitável, depende apenas da sensibilidade do outro. Liguei para Isabel, para em seu ombro chorar a dor de mais um passo errado na vida: “perdi novamente Bel”, disse eu ao fim da explanação. A jovem e sábia companheira me tomou em seus braços e disse que luto é verbo, melhor que chorar. Hoje é minha reza em primeira pessoa.