Eu e o Rio
Eu e o Rio
Gota serena de saudade. Era rima de dor. Ia e vinha. Todo dia. E a casa dela. Ali. Morta. Jardim com cheiro de mofo, varanda com a pitigoitana do vazio. Andava meio penso, cabeça pensa, gestos pensos. Foram três anos porretas, eu um mulato de cabelo teso e esqueleto bem fornido, mas com cara de assustar espelho. Dacordo com meus colegas de colégio granfino, preto e pobre e filho de mãe viúva. Pai esbodegou-se debaixo de um trem, - ele agente de estação - e a multidão dos desonerados e valentes querendo enforcar o maquinista e mãe dizendo não!, foi apenas um acidente infeliz! Carola e respeitada, pouparam a vida do pobre diabo. Três anos eu. Só fui tomar tenência disso quando tinha dez anos. Pensão boa, mãe botou nós em colégio de padre. Eu e minhas duas irmãs. Compensava minha pouca atratividade física com o focinho nos livros, sem hora pra dormir e muito menos peleiar com os amigos da rua da estação, minha casa. Vidinha que vivia, tempo que passarinha, fui nadando naquele riacho de fundo raso.
Foi no segundo ano ginasial que conheci ela. Eu quatorze, ela doze. Tava vindo do colégio das freiras. Foi o que soube. Entrou e sentou-se à minha frente. Os machos da sala, maioria filhos de prefeitos, ex prefeitos, advogados, médicos, padeiros, maçons e rotarianos. Tudo em frenesí. Ela entrou de cabeça levantada, um nariz arrebitado montado num corpo bem fornido. Uns olhos de chimbra, cabelos esvoaçantes, professor pediu silêncio, por favor. Começou a chamada. Prestei atenção e ele: Margarete Benevides Mergulhão! Ela levantou a mão. Margarete. Meg, risquei no meu caderno. Queria ser poeta. Tacava-lhe uns versos urtigados e queria ver ela resistir. “Que lindo, amei, foi pra mim?” Em vez fiquei foi olhando pros cabelos dela. Cabaram as aulas, ela se vira pra mim Bento, né? Olhei pra trás, língua presa no céu da boca, Bento sou, sim. Esbocei sorriso de juá, ela expôs dentadura de encadear anjo e musicou pra mim: amiga minha me contou que você é bom em português, matemática e inglês. Vou precisar de você. Num tirava os olhos dos olhos dela, da boca dela, suando mais que trabalhador de roça, sala vazia, só nós dois. Claro, pode contar. Peguei os livros num alvoroço de quem viu visagem e saí. Ela me seguiu, moro aqui perto. Mais ninguém no colégio. Doze horas e dez minutos. Calor arrochado, né? Ela riu, muito quente. Aqui que moro. Ali que ela mora. Passei tanto por ali e nem atinava que morava um anjo ali. Uma casa de esquina, varanda e um terraço e um quintal ao lado agigantado. Devia de ser rica. E por que danado ela cismara comigo, um preto, feioso e pobre?
No tempo que foi tempo de conhecer ela e ela eu, descobri que sua família fora montada em dinheiro, que o pai trabalhava com algodão, que o algodão deu crise com a seca e eles faliram. Compraram a casa e viviam do que o pai juntou nos tempos do bem bom. E nos tempos bons pai comprou muitos elepês e muitos livros. Nós dois éramos carne e unha, só que a unha deu de se apaixonar pela carne e não teve retorno. A todos ela dizia este é meu melhor amigo, a quem amo de paixão. Eu morria a cada dia, com os miolos me consolando “anjo não se mistura com humano”, essas coisas. A mãe dela adorava Nelson Gonçalves, ngela Maria, Carlos Galhardo, MIltinho, o rei do ritmo; o pai Cole Porter, os irmãos Gershwin, Francisco Alves, Luiz Gonzaga. Foi quando ouvi pela primeira vez “ Rio, caminho que anda/ e vai resmungando talvez uma dor/ ah, quanta pedra levaste/ outra pedra deixaste sem vida e amor/ vens lá do alto da serra/ o ventre da terra rasgando sem dó/ eu também venho do amor/ com o peito rasgado de dor e tão só”... A gente costumava comentar música e livro. Ela me disse, no quarto dela, na casa dela, depois da mãe servir uma vitamina de banana, música triste e bonita, né? O autor dessa música chama-se Luiz Antônio e é um coronel reformado. Militar às vezes presta, né? E deu uma risada que me desmantelou e me contive pra não abraçá-la e beijá-la. O peito gritava por ela, minha alma desesperava por ela, e o tino me amarrava. Falei essa música é minha cara, sabia? Também tenho um amor que me rasga e me deixa muito só. Ela me olhou com os olhos de chimbra azul, tirou a música da radiola. Bora estudar?
No quarto ano ginasial, ela me disse, olhos sem me olhar, pai conseguiu emprego no Recife. Este é meu último semestre aqui. A situação tava muito difícil, pai já tava em depressão, essas coisas. Em julho, eu e mainha vamos de vez. Ele vai primeiro pra alugar casa e arranjar colégio pra mim e meus irmãos. O que for melhor pra tu, será, né?, disse um fio de voz que saía da minha garganta desemponderada. Um negão que nem eu, desafastado de paixões bestas e infantis, danei-me a chorar que nem bezerro desmamado. Mãe preocupou-se e vaticinou a paixão enredou meu filho. Fui morar nas páginas dos livros.
Ela me disse quero que me leves à rodoviária, mãe e meus irmãos já foram e vou ficar na casa de minha prima até terminar o semestre. Pode ser? Pode. Claro.
No dia 31 de julho de 1970, fui buscá-la na casa da prima. Uma maleta e uma mochila pequena. Só isso? Só. Pouca roupa. Tava triste? Fomos a pé. Cidade pequena, tudo perto. Ônibus da Realeza já a postos. Um negão e uma loirinha frente a frente, ela me abraçou. Vou sentir tanto tua falta. Ia não. Talvez no começo, depois… Eu dezoito, ela dezesseis. Motorista fechou a porta e o bicho deslizou pelos paralelepípedos sem ela. Dia frio, serras cobertas de nuvens, trem que cortava a cidade apitando e dizendo tou chegando. Enquanto acompanhava o ônibus e o via desaparecer na curva da rua principal, cantarolei: “ Rio, caminho que anda/ o mar te espera não corras assim / eu sou um mar que espera/ alguém que não corre pra mim”.