USUCAPIÃO ...SOB NOVA DIREÇÃO
Eu apenas os observava.
Era só noite de quase mais uma madrugada.
Alguém, qual nos idos séculos das trevas, de repente gritou o inusitado:
-Tudo calmo no reino de meu deus...só fiquem em casa!
Então, vi que eles se ajeitaram pelas mesmas calçadas.
Nada parecia ser muito diferente do seu conhecido destino,
embora um assassino distinto, invisível e desconhecido, pairasse nos ares.
Um novo vírus. Logo lhes seria proibido também respirar...
Havia quem não soubesse do que se tratava. E para que saber sobre o que nunca tem tratamento?-pensei com eles.
Um vírus que sacava a vida. Que vida? A dos semi vivos e dos já mortos amortecidos.
Era só mais um incidente de morte e eu, há tempos, também concordava com aquela tão triste leitura.
Imunidade de vida abandonada se consegue na raça!!! Na seleção natural!!!
O meio- fio já lhes era de "usocapião" e ninguém os saquearia dos ares insalubres dali. Tudo estaria resolvido.
O saque costumeiro...ali era bem outro.
Bastaria, então, o bastante já aprendido na pele de todas as cores e dores: apresentar a velha licença aos ratos, às baratas e aos mosquitos dos bueiros.
Lembrando que há os mosquitos dos rios, que são cognominados como das "elites".
Embora todos igual e respeitosamente altruístas com as humanas tragédias das ruas.
Uma sociedade bem civilizadamente organizada, cada um no seu legítimo pedaço de direito reservado, no seu quadrado, como se fala ultimamente.
Ninguém mais invadiria aquela triste e invisível cadeia alimentar humana...que nada poupa.
Porque o saque ali sempre fora outro.
Vi então...mais uma vez sem querer ver que, dias após dias, ficaram em casa...desmascarados e obedientes ao de sempre.
Como dizem que deve de ser.
Apenas retiraram as dores das mochilas para diminuir o peso nos ombros e delas fizeram travesseiros de sonhos envelhecidos nas malas carcomidas.
O fardo pesa mais quando a vida se desnutre de propósito.
A erva, evaporada dentre os piores poluentes da avenida cartão postal, continuava a queimar os brônquios (e quem sabe também sufocaria o novo vírus?)
E as pedras, amontoadas nos cachimbos, craquelavam as peles, as carcaças e toda a cognição da vida.
Usocapião da descerebração O par perfeito.
O saque ali era tristemente outro.
Sorte é não entender nada mesmo. Bastaria estar em casa e pronto.
E ali nunca se saia de casa...
Todos seriam politicamente corretos...já que não se consegue esconder
os abandonos atemporais embaixo dos tapetes das ruas furtadas.
Afinal, o tal ser microscópico não seria mais zumbi de propósitos errantes pelos tempos.
Porque o saque, ali, era outro...embora sempre o mesmo.
Certo dia, vi que um deles tinha seu pedaço de usocapião sob um luminoso relógio telemídia da avenida, portanto, acreditei ser seu destino bem pior.
A realidade martelava sobre sua cabeça, diuturnamente, bem como lhe marcava as sucessivas horas das tantas vidas já perdidas e ali passadas.
De fato:
Não seria um "viruzinho mequetrefe" a lhes fazer destino diferente.
Lá no alto se anunciava o próximo pleito com a promessa da esperança que nunca se vê: piscavam sobre seus ossos ao relento as obscuras luzes dos candidatos, dos seus partidos que craquelam vias e vidas, dos seus santificados números da sorte malograda. Capetas transmutados em anjos dum céu inexistente.
Agora sim, tudo estaria resolvido nas canetas, lhes seria permitido sair de casa...com a segurança mascarada das eleições que salvam.
Afinal, os notórios homens das Ciências prometiam vida no voto!
ALGUÉM TERIA QUE AJUDAR O PAÍS!
O título de cidadania lhes seria conferido com a mesma utilidade das tão desgastadas impressões digitais das suas vidas invisíveis mas impressas, como epitáfios indigentes, nas ranhuras dos meios-fios.
Impressões dum expressionismo vital de dura tela usurpada: o usucapião dos abandonos.
Apenas os pincéis dos artistas protagonistas, talvez, seriam outros.
Nem as cores mudariam.
Já a moldura sempre é a igual periferia da dor.
Logo mais os saques, ali, continuariam os mesmos, porque nunca cessam.
Apenas estariam sob nova direção.