Tropeço em linha reta
Passado certo tempo do fato que a deixou com aspecto de terra arrasada, ela pode finalmente dar passos. Ela que tinha feição de pessoa feliz depois de haver enfrentado tamanha aridez, tamanha penumbra, redescobria timidamente a mágica alegria contida no cotidiano. Ela que ressurgiu de um lugar de profundo estranhamento se preparava para a primavera que anunciava chegada por essas bandas de setembro. Havia nela uma sede de amor e de vida sobretudo pela postura elegante de quem enfrenta tudo de nariz em pé, de quem não se dobra, de quem deita, mas não se permite ficar ali por muito tempo. Havia naqueles olhos negros lassos uma curiosa excitação de quem porta a ousadia de desafinar o coro dos contentes. Aquela moça, no fundo, estava redescobrindo como era satisfatório estar em sua própria companhia, para além de satisfatório, altamente confortável. Por longos dias, abraçada por seu completo silêncio, onde o único som audível era o da vida acontecendo lá fora e dentro só mesmo o som de sua respiração, ela pode finalmente se eixar, se calando ela pode se escutar e isso fez toda diferença. Era admirável sua capacidade de recomeçar, ela que caiu inúmeras vezes, deu com a cara no chão, insistiu engatinhando, até retomar as forças para se reerguer e se reergueu. Se reergueu sabendo que haveria de cair outras vezes, que haveria de tropeçar mais muitas, sabendo que as vezes não conseguiria seguir de pé, mas sabiamente o faria coxeando, engatinhando, se arrastando, mas certamente seguiria. De todos os seus tropeços em linha reta, aquele havia lhe atravessado de maneira muito violenta, para se ter ideia a violência foi tamanha que lhe furtou a força e a fez duvidar de que haveria de se levantar. Mal contavam com sua habilidade, curiosa por sinal, de forjar força do absoluto nada, mal contavam com sua aptidão para fazer dos fracassos suas maiores vitórias. E não era do extraordinário que ela extraia toda substância que alimentava sua alma sedenta, com seus olhos de pura poesia ela via no ordinário o mantimento que lhe nutria. E o extraia sem muito esforço. Todos os tropeços eram motivos. Todos os tropeços, bem como os em linha reta eram motivos e sobretudo pretextos para que pudesse então derramar suas lágrimas. As mesmas lágrimas que lhe serviriam para refazer as nascentes secas pelo deserto que lhe aprisionou. Chorando ela hidratava os olhos, matava a sede e fluía como rio que corre manso e apressado para desaguar. Chorando ela se entregava e aceitava as invergaduras do processo que a quebrou, chorando ela regava as sementes que brotariam belas e saudáveis na primavera. Na sua primavera, aquela que a faria novamente florescer e exalar a seiva da vida.