Palavra. Anatomia.
Nosso feito
Pobres de nós, os tolos, que saíamos atirando palavras às portas, às janelas, à espera de alguma entidade magicamente imunizada deste bombardeio massificante. Pobres de nós, os mendigos, que, por mais não termos, só doávamos palavras, não tínhamos volques nem loterias e nunca tivemos a coragem de prometer o Paraíso. Pobres de nós, os ciganos, que andávamos pescando de corgo em corgo, na espera de pelo menos bagrezinho se dignasse a ouvir e, se lhe desse gosto, falar poesias e declamar estórias encantadas, em resposta a nossos convites. Pobres de nós, os empoeirados, vendíamos casa, horta e diploma, e saíamos vagabundos, esperando o dia do Encontro, a hora-hora que inda não veio. Pobres de nós, os nevoeiros, que passaremos sem ter dado gosto a pai, a mãe e irmã, e estaremos condenados ao fogo eterno do esquecimento.
(ao tentar dizer alguma coisa, não diga com palavras)
Só tínhamos palavras
Porque as palavras, quando atiradas, formam quadros, viram sílabas de músicas bailantes, espumosas como o vinho ao fazer, joias, rebrilhos, colares em volta do pescoço dos minutos, em ziguezague por entre eles, sem memória alguma de seu passado de dizer. E as palavras, quando atiradas, são meninos mandados à feira e esquecem o dinheiro em casa, nem sabem mais o que comprar e se ficam pelo primeiro amontoado de moleques seus amigos. E as palavras, esquecidas do responsável, nem sabem que foram usadas, são pássaros engaiolados, repentinamente soltos, livres para o convívio do azul.
Ingratidão
E estão entre as sarças e estão entre os silfos, estão entre as flores, na própria eterna música do ar, bailando seu bailado invisível, deslizando por entre as formas, escorregando pelas escadas como crianças na folga da escola, sem utilitarismo, sendo e deixando ser, sem pressa e pretensão, deixando-se, deixando-se... A palavra solta não se lembra mais do dizedor.
(no fundo do olho estão as palavras nunca ditas)
Desencontro
E a palavra de volta. Não te surpreendas se teu amigo não te entendeu. Ele jamais entende o que realmente queres dizer. Nem mesmo tu dizes exatamente o que pensas. A palavra que atiraste é como se teu amigo não a tivesse ouvido, chegou lá mudada pelo caminho em que parou. Mas deixa pra lá e chama teu amigo, sem rancores nem tristezas, convida-o para ver o balé dos beija-flores, o pássaro zumbidor. E que te adentre o coração a mensagem correta de seu voo, sem distorção e nem enganos, que aos homens bastam os desencontros do dizer.
(Brasília/07/74)