DEPOIS DA TEMPESTADE VEM A BONANÇA
De repente comecei a fazer perguntas a mim própria. Contudo, não sabia responder a nenhuma. Tentava dar-me alguma consistência, porque me sentia a desaparecer.
Não conseguia perceber, se estava a volatizar-me, a derreter ou a encolher e isso atordoava-me e não me deixava pensar com clareza.
Ontem, quando eu pensava que tinha adormecido, fui puxada pela desgraça e deixada a pairar num buraco escuro e fedorento. Tentava abrir os olhos, mas as pálpebras pesavam uma tonelada. Tentava gritar, mas o grito sufocava na garganta, causando-me dores alucinantes. Eu esbracejava, tentando que os meus braços se transformassem em asas e me levassem dali, mas em vão. Apenas ganhei dores pavorosas. Chorei e sentia as lágrimas abrindo sulcos profundos e dolorosos, deixando-me o rosto gravemente queimado, como se estivesse chorando ácido sulfúrico.
Eu sentia as entranhas sendo devoradas, por algo aterrador. A minha mente enlouqueceu, comportava-se como se fosse uma máquina fotográfica, mostrando-me fotos daquilo que me consumia velozmente. Eram flashes aterradores. Algo negro peludo com chifres nas patas e garras no que parecia ser a boca, fazia uma grande festança dentro de mim.
Já não sabia raciocinar. O meu cérebro tinha sido esmagado e todas as faculdades estavam misturadas e desordenadas. O sofrimento era medonho e eu desmaiei. Fiquei vários meses desmaiada.
Eu sabia que os cientistas de todo o mundo estavam trabalhando numa vacina que poria fim a tão grande pesadelo. A descoberta do antídoto estava a demorar e acabou por morrer meio mundo. A minha sorte foi ter desmaiado. Ao desmaiar, todo o meu tecido corporal se empederniu e uma vez transformado em pedra, não havia bicho que me quisesse comer.
Chegou o Verão, a temperatura rondava os 45°C, o meu estado empedernido lentamente foi voltando ao normal. O meu corpo tinha-se regenerado por si só. Ao passar pelo estado pedregoso, fiquei imunizada contra tudo. Quando desapareceram os últimos vestígios de pedra e após ter recobrado os sentidos, vi-me numa mesa de laboratório ligada a uma infinidade de fios, por sua vez ligados a máquinas estranhas. Apenas reconheci os microscópios onde uma equipa de cientistas, equipados a rigor, me estudavam. Não compreendi tão grande parafernália. Eu achava que eles estavam a perder tempo, tentando encontrar novas descobertas quando o que era importante era travar a pandemia e encontrar a cura para tão grande moléstia, que fez com que o meu sistema imunológico identificasse o intruso, reagisse e me protegesse do estranho malfeitor.
Continuei fingindo que estava desmaiada e então fiquei a saber, que a epidemia já tinha sido debelada. Com o calor do verão o vírus começou a perder poder e entretanto a vacina chegou ao mercado, juntamente com um medicamento antigo que se revelou eficaz no extermínio do assassino.
Quando percebi que os cientistas iam usar-me como cobaia, pois que prepararam todos os apetrechos para me esquartejar, esperei pelo intervalo, arranquei os fios e fugi dali como o diabo da cruz. Corri a maratona e só então descansei num banco de jardim protegido por frondosas árvores cobertas de flores cor de rosa com cheiro a baunilha e ri tanto tanto, até me doer a barriga e as lágrimas correrem docemente, só de pensar na cara dos cientistas, ao verem que a “múmia” tinha desaparecido.
Abri os braços, estiquei as pernas, olhei o céu. O céu era anil brilhante, onde os pássaros voltejavam num chilreio encantador. O ar era leve e delicioso. Era um contentamento respirar ar puro. Casais passeavam abraçados, crianças brincavam alegremente. Mesmo ao meu lado havia um lindo espelho de água cristalina onde se viam peixinhos de todas as cores, fazendo divertidas piruetas.
O mal foi banido da face da terra, sofremos muito, mas agora viviamos num mundo feliz.
Obrigado meu Senhor, por nos teres conduzido a porto seguro.
© Maria Dulce Leitao Reis
04/04/2020