DILÚVIO

Já de há muito que chove copiosamente.

Os girassóis fechados,

mortos, caem na correnteza um a um

e descem à flor d’água

sem destino certo.

Já de há muito

que na chuva copiosa giras só.

A água acumulada

encobre campos, alaga pomares

e faz transbordarem os rios.

Com a chuva intensa

a umidade e o frio,

com o frio

o tédio e o desânimo.

Não há mais sol ou calor

e todas as estrelas estão molhadas

e apagadas.

Nem mesmo os intrépidos pirilampos,

aqueles mais afoitos,

ousam iluminar a noite

para a alegria dos teus olhos.

Já de há muito que chove copiosamente

neste inverno ímpar

de chuvas que te inundam a alma.

Uma vez mais é dilúvio

e não há arca ou Noé

mas só chuva, só água,

só frio – solidão...

Do pouco havido,

plantado e colhido

quase nada resta

que não seja o tudo

- tua filha – teu mundo,

teu fruto.

É por ela que agora,

desprendendo-te de tuas raízes,

vais por sobre as águas

sendo a um só tempo arca e noé

vez que urge que salves urgente

o que ainda resta

do teu ser gente...

Vai!

Que haja lá fora,

por onde fores

um Ararat que te acolha em seu topo.

Vai!

Liberta todos os corvos

que involuntariamente levas contigo,

pois uma vez que partam

jamais voltarão

porque farão repasto

dos cadáveres putrefatos dos dias idos,

dias sofridos...

Vai!

Espera que cesse esse inverno

e depois, quando as águas baixarem,

quando os campos secarem,

quando o sol ressurgir,

quando as estrelas voltarem à noite

e os pirilampos voarem livres novamente,

será o novo tempo do plantio...

Ai, então,

cultivarás as tuas terras

que, ainda férteis,

e ainda capazes de produzir

o trigo e a uva

para o pão e o vinho dos teus dias futuros,

estarão a espera das novas sementes

para a germinação...

Vai!.

Não desanima

pois todos os dilúvios,

por mais longos que sejam,

por mais frios que sejam,

acabam sempre em dias de sol...

Belém, 05 de janeiro de 1982