O berro do bueiro

Aquele som estranho dos carros bêbados

descendo a rua acelerados

e eu ali parado

vendo o movimento da madrugada

fria e dura a me espreitar.

E todo aquele ensurdecedor silêncio no ar

e o barulho dos cães latindo sem propósito

e dos galos cantando fora de hora,

enquanto os passos mudos de alguém vira a esquina em sinfônia randômica

e a orquestra da vida noturna aleatória rege o caminhar cuidadoso dos gatos

a espreita dos ratos

e dos ratos a espreita das sobras e restos

nos ralos e bueiros sujos e cinzas da avenida meu Universo.

Na calçada, esperando o caminhão da coleta passar na segunda,

o monte de lixo amontoado na esquina,

sendo revirado por todo mundo -

(cachorro, gato, rato, cavalo, gente...).

Naquela hora, a neblina que baixa sobre a rua

e encobre o plano, aumentando o drama e criando o suspense que nos comove.

Ao fundo, o som dos aviões na pista do aeroporto

aquecendo as turbinas e os motores para a próxima viagem.

De repente o rasgo abrupto

do sopro e do grito afoito

ecoando imaginação afora

e fazendo firulas no ar escuro da madrugada,

o estrondo no céu parecendo trovão

e o deslocamento massivo de ar

que canta melódico sua fúria, enquanto surfa pelo vácuo do éter febril do firmamento.

Isso encanta, mas também assusta.

De repente alguém que grita

e a multidão na praça se alvoroça

e volta a ficar muda e bêbada

e cega e suja e dura e pálida

e surda e débil e bêbada.

E o susto repentino na fala de alguém que reclama alto

e foge rápido, sem destino,

só corre por causa do risco imensurável que impõe-lhe o medo.

Sozinhos, a essa hora, todos estão em alerta por medo do que não se vê:

- O rato corre do gato

- O vento corre no vácuo incerto como o susto do medo

do vazio que traz desassossego

e do incerto que ninguém quer pagar pra ver.

Enquanto dorme o bairro só eu estou acordado...

Olhando para o tempo em silêncio,

para o vazio a minha frente,

auscutando meu coração acelerado,

tomando o último trago,

fumando o penúltimo cigarro

e assistindo de camarote a chegada triunfal do sol, antes do fim.