Octogésimo oitavo dia.
"A quarentena de um poeta"
Octogésimo oitavo dia:
No mundo, as estátuas dos cruéis colonizadores e dos comerciantes de escravos estavam a ser afogadas a simbolizar a liberdade da história mal contada.
O relato da pandemia daqui a oitenta anos talvez seja narrado de forma diferente. Os heróis poderão ser esquecidos e os anti-heróis, exaltados. Ninguém lembrará da linha de frente formada por médicos e enfermeiros que estavam na dianteira dispostos a dar suas vidas para salvar outras.
Não haverá o reconhecimento dos trabalhadores de transportes que tiveram a arriscada missão de entregar em mãos os essenciais produtos de sobrevivência.
Nunca se ouvirá falar do menino que caiu do nono andar de um edifício de luxo porque nada o tutelara a impedir que sua mãe levasse o cachorro da madame para passear.
Coisa alguma se comentará sobre os respiradores fantasmas que encheram os bolsos dos sanguessugas do poder.
Nenhuma pessoa trará à tona as lembranças dos conflitos idealizados pelo discurso do ódio.
Não se recordará que a lei permitira que um centro enorme de políticos ficava em "standy by" a espera de um posto de alto escalão do governo para obter garantia de vantagens e permissão de privilégios.
As cem covas cavadas em tom de protestos na areia de Copacabana frente aos aposentos dos milionários frequentadores do palácio também serão deslembradas.
Todavia, alguém que sobrevivera a pandemia contaria que a prioridade era a economia e que as pessoas morreram como ovelhas entregues a um lobo selvagem que nunca fora identificado.
No museu dos presidenciáveis haverá junto a outros ditadores o busto do chefe da nação que durante a guerra expusera seu povo ao devastador inimigo.
Será pregada uma placa em seu peito a informar apenas o seu tempo de mandato. Contudo, poderá não haver estas lembranças de bronze, e sequer o acervo de seus decretos e atos secretos, pois ao passar dos anos, a luta pela liberdade poderá ter chegado ao fim e os nossos conquistadores e comerciantes de escravos serão jogados ao mar.
Todavia
Alguém contará a história
A da discriminação
O negro a ser chamado de escória
Pelo preto do casarão
A dos crimes de corrupção
Na compra dos respiradores
Nos cofres da eleição
E nas mesas dos governadores
A das contendas em vão
A destruir as amizades
O cultuar com o irmão
E a fidúcia dos confrades
A do chefe da nação
No desprezo da pandemia
O não suportar da pressão
Que gerou a anomia