Notas diárias III
Mais uma vez, sufocada em mim mesma e impossibilitada de dormir com o tanto de informações divagando na mente. Pego-me exaurida com os vários sentimentos e sensações intensos, a ponto de darem nó na garganta, nesse período de isolamento. Um turbilhão que vem à tona.
Misto de indignação, tristeza, raiva, desconsolo, inquietação, mas também pequenas alegrias, alguma espécie de esperança reinante à espera impaciente por dias melhores. Certas autodescobertas realizadas, por meio de passeios na pele, na carne, no espírito, o que me conforta um pouco em diversos momentos.
Olho para a sala, para as plantas que conferem o verde do ambiente. Sinto o cheiro do incenso aceso e deposito boas energias, ao mirar na direção do figo simbólico, na sua forma de objeto, posto em cima da prateleira. Tenho evitado – já faz um significativo tempo – os jornais e reportagens relatando a tragédia pandêmica e a morte de milhares. Isso reforça a minha angústia. Como se não bastasse, ainda estamos enfrentando uma crise política instaurada – nas veias e raízes – no Brasil. É, na terra dos Palmares, do pau-brasil, da escravização persistente de corpos, da fauna e flora mais exuberantes, do clima tropical, das lutas intermináveis por sobrevivência em um cenário desigual. A figura de um presidente que representa o ódio e naturaliza o genocídio, contra todos os preceitos humanitários existentes. Ele não anda só, pelo contrário, ao lado de outras pessoas desumanizadas que gritam, vez ou outra, nas janelas: “mito”. As mesmas clamadoras por um falso “herói político” despido na crueldade, corrupção respaldada pelo mais nítido nepotismo, anticristandade. Estado laico – será que somos mesmo ou nunca fomos desde a fundação histórica brasileira nos livros e descrições eurocêntricas? Não mesmo! É difícil!
Uma vez, lendo a respeito da obra de Foucault, no que tange à biopolítica, tirei, conscientemente, o aprendizado de que o Estado é para cuidar dos cidadãos, sem nenhuma exclusão, seja por gênero, raça, etnia, classe social, territórios. Mas, claro, isso não se concretiza no Brasil. Vivemos uma devastadora necropolítica que adere a topografias de perversidade em um país marcado por constantes diálogos inseparáveis entre o racismo, política assassina e capitalismo. Repleto desastre! Se agora estamos em guerra contra um vírus – com a morte que sempre esteve aí, acontecendo no tempo, natural e/ou intencionalmente –, o Estado brasileiro já estava guerreando com a massa sobrante preta, pobre, de outra orientação sexual, feminina, indígena, entre outros. A mesma massa martirizada e discriminada durante séculos, a que continua sendo o alvo da morte. A aniquilação migra do âmbito jurídico ao político-imaginário, com o estabelecimento do que é o normal e o desviante; o bem e o mal; o bonito e o feio. Hierarquias que se mantêm. Neste atual panorama, o vírus acelera o processo de extermínio de determinados grupos subalternizados, inclusive, deve ser o “serviço bem executado” na perspectiva do próprio presidente, já que não há preocupação e ação eficaz de sua parte, bem como de uma ex-ministra que minimiza mortes na ditadura e demonstra não se importar com o tanto exposto. Afinal, “sempre houve tortura”, segundo ela.
Não há combate à criminalidade no Brasil e, atualmente, inexiste a efetividade da Justiça. Há perseguição endereçada, violação de vidas, militarização da força, permanência da colônia que somos com muitos capitães do mato pelos cantos do país a mandos de autoridades, senão os próprios. A linha ascendente de mortes dos oprimidos nunca deixou de se colocar à vista. Todos estamos sendo atacados pelo covid-19, na presente conjuntura, colocando o nosso espanto à prova. Contudo, e os outros que sempre foram? Nosso olhar e tristeza são mesmo muito seletivos...
Sinto que me perdi nessa pauta. Na verdade, me encontrei. Faz um bom tempo que venho tentando tapar minha ferida, sem estar cicatrizada – nem irá. Vejo a vitrola na estante com inúmeros vinis herdados pelo meu pai: Gonzaguinha, Rita Lee, Milton Nascimento. Analiso a estátua da coruja, em miniatura, ao lado dos livros, como quem conversa com quem é da noite também. Olhos bem abertos, atentos. Sou tomada por uma corrente de vento frio e pego meu cobertor. Penso se devo comer mais alguma coisa ou tentar dormir. No entanto, na última dessas minhas tentativas, foi que tudo isso saiu de dentro de mim. A cabeça realmente anda muito perturbada!
Que consigamos sair disso! Que, na pós-pandemia, possamos ser capazes de viver um cotidiano mais humano, de podarmos ou alterarmos os nossos valores ao objetivo comum: direitos constitucionais garantidos a todos na prática, na vivência. Que tenhamos mais respeito, amor, paz e sabedoria nas atitudes, nas escolhas. Que larguemos a ilusão, o analfabetismo político e procuremos sobriedade no esclarecimento. Eu desejo muito a concretude disso tudo, até porque somos o reflexo do que vivemos. Está amanhecendo. Já escuto o cantarolar das andorinhas, elas me convidam a elaborar nesse horário em toda alvorada. Ouço as vozes dos vizinhos do andar de cima. Preciso me dar um descanso...
Toda minha solidariedade e força aos familiares que estão sofrendo com as suas perdas nesse momento!