Notas diárias

Eu me encanto com o encontro da moça e o seu livro na varanda

Em mais um dia ensolarado;

A mãe e sua filha deitadas na rede a conversar sobre o que nunca saberei.

Uma dentre essas tantas coisas do universo intergaláctico.

Acompanho, em sintonia,

A companhia de outra mãe e sua filha no andar debaixo.

Dou-me conta da fragilidade humana.

Das ínfimas minúcias tecidas em uma linhagem artesanal

Por diversas pessoas ao longo da vida.

O cachorro, agora, me olha e late

Como quem pede compreensão e afeto caloroso, com sede do imediato.

Precisa ser em instantes!

Nada, neste cenário, deve ser adiado.

Urge a necessidade da demonstração.

O amanhã pode custar caro.

Minha caderneta e meu lápis me encaram em cima da mesa,

Vivem um conflito diário entre o registro e a matéria.

- o que será escrito? -

Mas, meu corpo já psicografia por alto

Entre meus pelos, entre meus afagos da pele.

Também, entre os medos e desvarios da alma.

Como pode um mundo grande caber numa fração estupidamente pequena do tempo?

Recordo que o inventamos.

Nada que simplifique a complexidade de toda a existência.

Variados livros interpretados sobre o armário.

Tanta gente não lida - por orgulho ou falta de vontade de outras.

Muitos porta-retratos sem fotos.

Muitos momentos inesquecíveis, bem como guardados em sigilo na memória.

Sem o clique da câmera e seu flash.

Vamos colecionando e rasgando documentos daquilo que, não mais, nos circunscreve.

Deixa-nos desde a ferida aberta ao nosso mais profundo incurável.

Corre, nas minhas veias, o sangue que, outrora, deveria ter sido derramado.

Metaforicamente, reinvento meu mais duro pecado no aguardo de algum perdão divino.

Mas, até os santos já não sabem quais milagres operar.

A força é inválida se inexiste o corpo mecânico para se espraiar.

Lá se vão os zonzos! Os tontos! Os firmes em fraqueza amargurada e doentia!

Sem terra, sem chão.

No mais esgarçado abandono.

Uma corrente de ar toma, na sua atualidade, meu rosto.

Balança as persianas do quarto e musicaliza a solidão a duas: da mulher que me percebo e da outra que desconheço.

À medida que vou, um pedaço seu vira aconchego e acalento às finezas da interna confusão.

Versos que me compõem.

Trabalho atento, sensível, longínquo ao conhecimento dos eu’s de mim - infinitos.

De repente, não vejo mais a mulher e seu livro na varanda.

Nem as mães e suas filhas.

Apenas, luz solar refletida sobre mais um cômodo dos seus apartamentos.

Daqui, vazios.

Restos dentro de nós

Imensos.

Mariane Amaral
Enviado por Mariane Amaral em 19/05/2020
Código do texto: T6951567
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