O  céu rendilhado de estrelas assemelhava-se à cauda de uma veste de noiva, bordada  por mãos de fada. A bicharada, de hábitos noturnos, passeia. O rato foge da coruja que pia, e arrepia de medo o cabelo da meninada.

Tunico Oliveira  se despede e sai. 
Demais camaradas também se vão. Pouco depois, os meninos que brincavam de cabra cega na calçada, agora dormem a sono solto, até que nova aurora se levante  no bico da passarada.
Despertada a aurora, o dia amanhece no topo da serra e vai dourando de luz o capinzal.  Capim seco, é forragem fraca.
Os vaqueiros reunidos no pátio da fazenda lamentam.
— Meu Deus,  a estiagem repete a seca de 32.
— Vai chover.
— Nessa sequidão medonha, o amigo profetiza chuva para o sertão mineiro? O patrão vai tirar o gado para o Gorutuba. Alugar pasto, salvar o rebanho.
Euzébia foi à varanda atraída pelo vozerio que ouvia.
— Venha ver, senhora!  O terreiro está coalhado de gente!
— É o povo chegando para a procissão. Abata três galinhas e dois frangos. Faça um tacho de arroz com pequi, disse Corina.
— E feijão?
— Pobre não gosta de feijão. Faça pirão, maxixe e quiabo. Cozinhe um caldeirão de nabo. Saco vazio  não segura em pé.
 Euzébia resmunga.
— Fazer comida para tanta gente é serviço demais para uma pessoa só.
A patroa antecipou-se.
— Nhá Santa... Nhá Santa...
— Espere, estou rezando...
A cozinha se movimenta.
Cuidadosamente, Euzébia retira a penugem dos frangos. Corina cuida do maxixe. Nhá Santa lava o quiabo picado, e  põe limão. A panela baba. A chaminé respira cheiro de sementinha de coentro verde com alho e sal socados no pilão.
Pronta a refeição. Nhá põe mesa.
Doze cadeiras acomodam os comensais. Depois mais doze pessoas se sentam à mesa. Mais doze, enfim, se fartam.
Os meninos comem na cozinha, e os grandes  que são cria da casa, sentados no chão, recebem a boia em prato esmaltado.
É hora da procissão. 
Peregrinos tomam a estrada. E se vão. Rezam. Cantam. Suplicam.
Viúvas da seca entoam canto de lamentação e mães choram seus filhos ausentes.
O sino toca.
Mulheres cantam hinos, invocando os santos de devoção. Padre Quirino  intercede, pedindo que se abram os reservatórios do  céu sobre o Norte de Minas.
Era dia de São José.
Fiéis, ajoelhados pedem  chuva.
 Despejam sobre a cruz da capela de Santa Catarina as garrafas de água que levaram. O padre  inclinou-se até o chão, pôs a cabeça entre os joelhos e disse ao ajudante: “Vá e olhe para o lado de Sete Passagens.” O ajudante foi e voltou dizendo: “Não vi nada.” Sete vezes  o padre  mandou que ele fosse olhar. Na sétima vez, o ajudante voltou e disse: “Eu vi subindo da serra uma nuvem pequena, do tamanho da mão de um homem, como nos tempos do profeta  Elias.”
Logo, o ribombar do trovão, dá sinal  de que o céu ouviu as preces penitentes daquela gente sofrida.
Lágrimas de agradecimento se misturam às gotas miúdas choradas em peneira fina. Correm e escorrem  nas costas dos  meninos vestidos só da cintura para baixo. A procissão se desfez. Fiéis retomam a estrada, e avançam cerca de légua e meia no rumo de casa.
Naquele ano, choveu pouco no Norte de Minas, e a luta para salvar o gado era interminável. Levantava um animal aqui, caia outro ali. Levantava um ali, caia outro acolá... Até barrigueira para o animal ficar em pé, Generoso fazia. Aprendera a salvar gado nas grandes secas do Nordeste, dando papelão molhado e garapa de rapadura às reses mais fracas. Muita gente fazia o mesmo e salvava parte do rebanho.  Quem não tinha papelão, oferecia cacto sapecado, levemente queimado, para eliminar os espinhos.
Em Minas Gerais, o Coronel Generoso aplicou seu  conhecimento de nordestino corrido da seca, para  salvar animais nos anos de estiagem.
A mulher do coronel, nunca tinha visto semelhante cena.
— Papelão para vaca parida, meu dengo? O pasto está minguado, o leite também, mas você pode comprar torta de algodão e dar ao gado.
— Nada não, mulher! Quero que o leite saia embalado como ovo de galinha.
— E a garrafada de rapadura? É para o leite sair adocicado?
— Sê besta! Rapadura é o melhor energético para levantar animal caído.
Não quis contar que na seca de 1932 ele comeu sementes de maniçoba, apanhadas no esterco das vacas.
Mem precisava dizer. Corina sabia que seu marido  era retirante, como milhares de nordestinos, que abandonam suas terras, por causa da seca.
No outro dia, a tantos de março, mais  uma vez, a peonada se reúne no alpendre para ouvir moda de viola.
O céu salpicado de estrelas era sinal de que naquela noite, os anjos que cuidam dos fenômenos naturais, não haviam despachado nenhuma encomenda chuva para a Terra.
Generoso dedilha a viola, repetindo as notas que se tornaram prefixo de sua apresentação.
 
Tiru-liru-liru, liru- liruliru-lão. Tiru-liru-liru, liru-liruliru-lão.
 
A seca de 32 não foi culpada sozinha, porque desde 27
que ano bom já não vinha — Cantata nordestina dos anos 30.
 
Corina pede que o marido toque Saudade de Mirabela.
— Primeiro toco meu amor por você.
— Tem música com este nome?
— Tem...
E  tocou Tristeza do Jeca.
 
Nestes versos tão singelos. Minha bela, meu amor.
 Pra você quero contar. O meu sofrer e minha dor...
 
— Quem é o cantor? Perguntou Pururuca.
— Num tá vendo que é o coronel, respondeu Turíbio Medonho.
Generoso riu. E em estrondosa gargalhada não pôde segurar o berro, quando a barriga subindo e descendo, chacoalhou. E a coalhada chacoalhada, respondeu com um trovão abafado: “A fôôônso..."
Corina beliscou as costas do marido:
— Meu cravo, não leve a Tristeza do Jeca para debaixo das cobertas.
Os meninos riram.
E um deles disse em voz alta: “Foi o coronel quem peidou.”
Tunico Oliveira tentou consertar o vexame.
— Pururuca queria saber quem compôs Tristeza do Jeca. Não tenho certeza, mas deve ser Angelino de Oliveira, meu parente distante.
— Né isso não. O menino está certo — emendou Pururuca — se ele não aponta o responsável, a culpa do peido caia em mim.
Houve uma trovoada de risos.
E Pai Luís deixou cair a dentadura na xícara de café.
— Inté outro dia, patrão.
— Até.
Vaqueiros e agregados tomam o caminho de casa, levando no ouvido “A Triste Partida que  Generoso tocara para fechar as cortinas de  mais uma noite de viola à luz do luar.
 
Tiru-liru-liru, liru- liruliru-lão. Tiru-liru-liru, liru-liruliru-lão...
 
Sem chuva na terra /Descamba Janeiro /Depois fevereiro
E o mesmo verão / Meu Deus, meu Deus...
— Patativa do Assaré;
 
— Tem chovido pouco, meu Cravo! — disse Corina reclinando a cabeça sobre o ombro do marido.
— A pastagem ainda dá para o gasto. Se não chover  até setembro,  levo o gado para o Gorutuba.
— Alugar pasto, meu dengo?
— E tem outro jeito?  É nesta lida que levamos a vida.  Quem vive no campo, precisa se adaptar às  intempéries da natureza e vencer os desafios que enfrentaram  seus ancestrais que viveram na caverna.
—Homem da caverna, que nada! Isso aqui é meu paraíso.Não largo esta vida por nada. Meu Cravo, completou, nosso lugar é aqui, correndo atrás de boi, e tangendo galinha...