Carmen
Texto baseado nas canções da compositora e interprete norte americana Lana Del Rey.
Bolsa no ombro, enquanto o elevador desce, em vão, ela tenta refletir memórias desfocadas. Sexta à noite se esvai, seu corpo transborda desejos. Percorre, desarrazoadamente, caminhos cintilantes, cidade inebriada, vapores e fascínios. Horizonte pálido, prédios estão envoltos no nevoeiro-cinza; película espessa, amores improváveis.
Entre os dedos, fume seu cigarro amassado. Breve incandescência aguarda seu término. Penumbra gélida, lábios carnudos exalam fumaça esbranquiçada. Fuligem erótica, filtro vermelho, as manchas do batom são inevitáveis. Ciclos, o ouro reluz na imensidão prateada. Estrela-cadente, desluziu o instante, raspando volúpias e decadência. Seres noturnos, pupilas de diamante fosco, admirando seus passos, cobiçam sua áurea oscilatória.
Se desprenda, distendendo o polegar de forma decidida, peça carona em estranhas garupas. Escapamentos fervem, transgressão em duas rodas, o espírito divaga, livre, sentindo navalhas do vento transpassando fios negros. Seu sorriso escapa, entreaberto, embalado pelos sons torpes de outrora. Sussurros semelhantes ao badalar de um sino ecoam das frestas do passado. O tempo aquece, entra em combustão, evapora na potência das cilindradas.
Entorne Whisky, risos eclodem, aquele rosto repleto de pigmentos corados compreendeu: velocímetros são incapazes de medir uma vida sem limites. Sinta o esplendor do desejo, guerra milenar, explosões púrpuras resplandecem no espaço. Quando lhe questionam o sentido, a razão deste modo de viver, desdenhando, ela responde: - Não faz sentido falar com as pessoas que possuem um lar.
Seu espírito inquieto só se satisfaz ao captar perspectivas infindáveis. Furtando cores, se camuflando entre desejos, deglutindo o prazer, camaleão faminto. Ensaiando poesias e se dissipando no hino: nascemos em direção a morte.
Tornado descomunal, ela é mixórdia de beleza e delírios, envelopados numa carne fulminante, ensandecida. Pouco se importando em inflamar desejos, sua boca carnuda profere blasfêmias adocicadas. Sua música é o crime dos sonhos de Deus: gângster decrépito, fumando charuto desde tempos imemoriais.
Frestas, cabine iluminada, vemos outra vez ela despir seu corpo elétrico. Ergue braços delicados, dança em êxtase, descarregando voltagem incalculável de prazeres. Dentre beijos e partidas se deleita, sem arrependimentos, tampouco retornos, apenas dirigir por cima dos tapetes de asfalto.
Dona indomável, conhece sua esposa, sabe que ela não se importaria. Sua gargalhada sarcástica encadeia como os relâmpagos no céu tempestuoso. Esfarelando a razão, gosta de homens velhos, maléficos, daqueles que vivem bebendo lágrimas.
Derrame desejos numa colher, acenda o isqueiro rente ao metal, acrescente temperos: heroína, direção perigosa, carros envenenados, apostas. Turbilhão, sensações céleres, entorpecimentos; no percurso ela encontrou milhares de amores a curto prazo.
Seres do esquecimento. Munições de gozo descartáveis. Escopetas reluzem canos cerrados no deserto. Tiros perfuram nuvens. Da fogueira acessa restaram apenas cinzas. As veias expressas da existência são inesgotáveis.
Dispa seu jeans azul e camiseta branca, transe de forma plena ao ar livre, o proibido é meramente balela. Dinheiro é a razão das nossas existências, todos sabem, não sejamos tolos.
Artistas, seres desalmados, borrões, vultos horripilantes. Estrangeiros em lares e momentos, engolfados nas tenebrosidades do belo. Catando migalhas de si ao vento, eternamente desalojados. Como se fossem, mendigos recolhendo trocados dos transeuntes do sonho.
Quando sobrarem apenas ruínas, e as estrelas sentirem falta do sol pela manhã, o verão vai nos enlouquecer. Estaremos bronzeados, fumando charutos entre escombros. Deixe essa garota contente, lhe diga que ela é seu hino, sua bandeira, seu país. As mentiras, por mais eloquentes que sejam, ainda afagam espíritos desnorteados.
Na costa oeste, tudo pode acontecer, ninguém sabe o que nos espera do outro lado. Nosso foco delimitando-se ao objetivo: exaurir ao máximo as potências desta vida errante. Queremos evadir, rasgar os velhos mapas empoeirados da existência, soprar o pó impregnado por ácaros centenários. Ascender pavios, sorver até as últimas gotas destiladas por fantasmas.
Cabelos tremeluzentes, boca sedenta, sorvete derretido. Garota com pele cor de neve, olhos negros como o breu, rapta destinos insuspeitados. O sabor do seu corpo é peculiar: refrigerante de cola. Paraíso ardente, overdose medicamentosa, quando ela fecha os olhos o mundo desaparece; mergulha no vazio incandescente. Nossa alma encardida não vale nada.
Beleza, violência, ela quer o fim das palavras e coisas. Faz pouco caso dos sentidos, da fé. Antes de ser, é rebelião. Herdeira dos poetas mortos, guerra, calafrios, poesia e prosa são tudo que temos para lhe oferecer. Talvez um cigarro, ou uma dose encorpada de loucura.
Dancemos juntos, embriagados, afinal jamais saberemos aonde a noite nos levará. Vamos causar reviravoltas neste mundo pacato, renovar pactos sombrios, ao seu lado o impossível é uma miragem límpida.
Daniel César - Natal, 30/04/2020.