Gênesis
É um processo de transmutação doloroso.
É preciso ter a voz de dez arcanjos; no peito, vinte quimeras cujos corações implodem e explodem a todo momento.
O corpo, óbvio, pouco resiste à mudança. Balança, treme e ressona descontroladamente.
Por dentro, há cantos e cantos que ecoam dos anjos. Por fora, a mudez serena de uma resignação insípida. Eu abro mão de você.
A todo momento, o pulsar do sangue nos ouvidos. Um anjo mudo que canta sem ser escutado. Eu desisto de você.
A voz do primeiro arcanjo ressoa:
Não importa a que direção virares a face, que olhos penetrarem os teus e em que casa dormires. Tu, aberração temporal — deus hermético do futuro presente e do futuro do pretérito — morrerá como erva sob os pés dos viajantes que assassinaste.
A voz do segundo arcanjo ressoa:
Tu — besta temporal — verás o não-nascimento dos teus filhos e a morte da tua amada.
O terceiro arcanjo entoa:
Quem desejou o mundo — diz-se Atlas — o carrega como um fardo sobre as costas.
Quem desejou a luz — diz-se Prometeu — sofre a injúria infinda dos deuses, que se aprazem nas dores da humanidade.
Quem desejou a vida — diz-se Sísifo — fugiu à morte e a carregou sobre braços; e a vida, impetuosa como uma amante odiosa e repleta de rancores, açoita-o as costas perpetuamente.