Vontade de Poder e Compaixão
Semelhante um deus grego deito a mão, num movimento inconsciente, sobre uma formiga que caminha sobre meu corpo. Surge-me um pensamento peculiar, uma distância, um sentimento de afastamento. - Qual o valor da vida? Por que não sinto o peso do meu crime?
Vida... teria a vida uma escala de valor segundo a medida de poder de um para outro? Ou melhor, não teria ela valor em si nenhum? A crítica moral não chega à consciência, é como se não soubesse o que é bem e mal, e por isso, em relação a formiga, não poderia saber o que é certo e errado porque não sinto meu ato como uma infração, um erro. Sim, foi o poder, a distância de homem para homem que instituiu o que era bom. Não o bem.
Quanto mais se sobe na hierarquia da vida maior o grau de valor das especies, maior o peso do julgamento. Sim, deve ser isso. Ou não... Talvez por isso os poderosos não sentiam o mal que faziam à seus escravos. Homens poderosos estavam na condição de deuses, como privilegiados quanto a raça em relação aos que eram inferiores. Eles estavam errados? Mas isso é já uma pergunta modernamente moral, não serve para avaliar os poderosos daquele tempo. Se as formigas nos fossem úteis, por exemplo, para fazer coisas por nós, tenho certeza que as escravizaríamos com a consciência tranquila, assim como as eliminamos inocentemente. Julgariamos um deus que destruísse todo um povo com um dilúvio? Mas isso não mudaria o fato que para esse deus seu sentimento de poder é elevado demais para sentir seu ato como infração. - "Eu sou, eu quero e eu posso!", talvez nos diria com ar que chamaríamos de soberba. Ora, ele é a Lei! Foda-se o resto.
Na realidade, por trás da ilusão moral não existe bem e mal em si, fenômenos morais é ilusão de óptica, existem apenas interpretações morais. O ressentimento fica pra quem sofre o dano, ponto. E tanto pior para este, pois o ressentimento é um veneno para a alma. Ou se vai pra guerra e morre lutando ou faz como os escravos da moral: invertam os valores, culpem o lobo por ser lobo, como se o cordeiro não fosse pra guerra porque ele escolhe não ir - ah, seus covardes! Esta formiga, se estivesse viva, rastejante, teria-me por um demônio caso julgasse como nós. Feliz dos animais que não possuem predileções morais! A maior parte, senão toda, do sofrimento humano é moral. Cada época sofre de uma maneira peculiar, mas sempre por valores morais. A dor física é uma exceção.
Ah, bendita solidão! Como é bom estar acima de bem e mal, longe de pseudojulgamentos. O mundo é vontade de poder. Um brinde à guerra! Mas e os Direitos Iguais? A Democracia? Para os diabos com toda essa bobagem! Todos querem se fazer senhores, até o servo quer ser senhor em sua servidão tornando o superior à sua altura, seu igual. O poder do impotente é tornar os fortes impotentes. Foi assim que o cristianismo domesticou os romanos.
Estou na condição de anti-herói. Fodam-se os poderosos, que me esmaguem se puder! Fodam-se os malogrados, que pereçam em sua covardia! Não sou besta pra tirar onda de herói, sou vacinado, eu sou cowboy, cowboy fora da lei - para falar com Raul!
O corpo continua em meu dedo enquanto perco-me nestas reflexões amargas. Volto a atenção para a formiga inerte. Silêncio... Alguma coisa vem vindo. Paulatinamente meu sentimento de poder vai abrandando - por quê? -, e quanto mais baixo vai descendo na escala de valor da vida mais próximo desta formiga vou ficando. Entristeço-me. Não posso, é absurdo. Compaixão, não! O mundo é um palco de guerra, o roteiro é a dor. Se elevar o sentimento de valor da vida para todas as formas de vida isso me levará à morte. Lembre-se do caso do Nazareno! Homem nenhum suportaria um dia neste planeta se sofresse por/com todos os seres - está entendendo, coração? Esfria-te, coração! A vida é dura. Endureça! Vamos! Não é por esta formiga que estás a chorar, é por outra coisa. Sim, eu sei - ah, ela é dura! A verdade... Aparta-te desta sentimentalidade! A vida é vontade de poder. Essa dor não é nobre, não se deixe enganar. Mas é tarde demais, rompe o nó das lágrimas e desato a chorar.
Quem sou eu neste momento? Estou ao nível de todas as criaturas. Não sou nada... sou tudo... Para onde foi meu sentimento de valor?...
Não! Vai-te daqui! Vá! Aqui tu não fará morada. Há ainda frieza neste coração. Ainda há, ainda há... Não, não há não...
Na rua passa um desconhecido que me acena, reflito o gesto num movimento automático. Ele pergunta-me se estou bem. Digo que "sim", mas não retorno a pergunta a ele. Então ele parte acenando com a mão. Volto ao monólogo. Enxugo as lágrimas. Passou. Nada sinto. Lanço para longe o corpo da formiga como se fosse nada, estou de volta. Sorrio. Faço uma reverência à natureza. Sou eu. Viva a força!