Nos livrar de quê?

Nos livrarmos de quê? Do que queremos ficar livres? Não parece uma fuga de alguma coisa que não a vida, pois dessa não se pode fugir; um texto que a humanidade escreveu e continuar a escrever em sua própria mente? Todo aquele que tentou libertar a humanidade nada mais fez do que dar continuidade ao texto. O corpo sonha, o homem "pensa". O texto segue, acreditamos na história; fingimos a nós mesmos que temos o controle, que somos a causa de nossos corpos viver. De peças do jogo divino nos tornamos seres independentes, agora somos "livres". E sendo eu, hoje, parte dessa conquista sobre os deuses devo dizer que chegamos a um reducionismo absurdo da vida. Antes sentir e pensar que somos destinos de um jogo divino do que sentir e pensar que somos nós os responsáveis por sentir, pensar e querer...

É grotesco o que fizemos da ideia de divindade depois que o conceito se unificou. Divino agora é o Homem. Empobrecemos a vida ao reduzir nossos estados de consciência ao subtrair alguns estados em detrimento de outros. Tiramos do conceito 'divindade' todos aqueles estados selvagens que não faziam parte do Deus Universal que estava nascendo e, com muito custo, muitas regras, hábitos, tortura, erros a escravidão acabou fisícamente - ela interiorizou.

O que acontece? Somente as ações consideradas boas e as sensações que dela devinham tinham valor, os outros estados pouco a pouco iam sendo desvalorizados, in-praticados, contidos, até que se alcançou o tipo ideal.

Aquela natureza exuberante pouco a pouco foi sendo esquecida, adormecida, com frequência presente, porém evitada. À medida que íamos negando um estado e afirmando o outro ficávamos mais fracos, nossa história sugava a vida, perdíamos em valor diante de nossos olhos. O conflito das forças desfragmentou nossa ordem interior. Até que, por fim, esgotamo-nos. A natureza decaiu. O Homem cansou de si mesmo. Voltou-se contra si mesmo. Desse ódio nasceu um Ego - assassino desse Deus que ele mesmo criou - que também morreu. Viu-se sozinho, silencioso, imerso no Nirvana.

Mas pergunto-me: - Quem ele venceu? Quem lhe derrotou? O que ele superou? Do que se libertou?

Nada mais havia lhe sobrado; restou o vazio ou a doença. De um lado alguns se sentiam refutados pelo nada, embriagados pela liberdade de se sentirem livres do conflito de milênios; enquanto outros, ateus e teístas, se despedaçavam em ressentimento e culpa.

E aqueles estados da natureza humana, para onde foram?...

Lentamente íam despertando em uma soma que crescia no inconsciente coletivo. Nos loucos, santos inconsequentes, imprudentes, ociosos, levianos; homens que endiabravam a si mesmos; quiméras do texto da vida. Até que irrompeu no meio da Ágora que não há um louco, que gritou: - Estamos loucos! Somos loucos! - E gargalhou. - Não é tudo um texto? Quem o escreveu? Quem o está escrevendo? Sou eu? Quem em mim está consciente? A História? Quem sou Eu? Do que queremos nos libertar? De quê nos libertamos? - E caiu num silêncio abissal. Ninguém o entendeu, zombaram dele. Os santos do nirvana o olhavam com compaixão pois só ele vêem a "verdade"; outros, cinicamente, o chamavam-no de poeta doido; apenas uma criança que ali estava brincando de faz-de-conta olhou e sorriu como se o entendesse.

Ele era um louco, escritor dramático. E ao ver que ali não havia pessoas de verdade voltou da sua imaginação e deixou de lado sua vida literária que acaba de escrever...

Fiódor
Enviado por Fiódor em 26/04/2020
Reeditado em 26/04/2020
Código do texto: T6928932
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