Ele está se lembrando

Cambaleando passos de danças desastrosos, fora de ritmo, desconexos da cena. No balançar enlouquecido das cortinas, o quebrar dos vidros, o girar, embaçar e desparecer de todas as cores em segundos incontroláveis, o senso de gravidade esvaído, as promessas deixadas no lado de fora, a falta de coerência em suas palavras.

Ainda indeciso, sentado na cama em tentativas falhas de tocar o frio chão noturno, assegurando-se da realidade ao sentir nas pontas dos dedos o contato de uma pele que exubera um calor familiar e uma suavidade inconfundível entre todo o resto que agora é inalcançável por suas mãos.

Equilíbrio estonteado, deslocando-se fotofóbico nos corredores de sua casa, tateando as paredes e construindo o cenário em sua mente pelos sons e barulhos. Um labirinto em que se perdia nas derrotas de suas direções incorretas, guiando-se pela vaga lembrança que o levava até onde tinha entrado.

Apenas isso o trazia soluções: Lembrar. Lembrar que passeara uma vez jovem, destemido e despreocupado pelas ruas da cidade, via e sentia as luzes urbanas o mostrando o caminho de volta ao seu lar quando estava demasiado embriagado, lembrar as conversas irreplicáveis de almas que aceitaram suas perdições em meio a tudo o que era confuso e incompreensível, colhendo um amor improvisado que acendia uma fogueira a cada noite nebulosa. Sorrir sozinho, sem razões, sem comandos, sem desculpas.

Abrindo a geladeira, vasculhando os armários, deslizando pela lista telefônica. Uma busca por dia, um desígnio em que gasta as horas como uma distração divertida. Vendo-se mover pelas letras desta prosa, palpando o reflexo que o encara como um amante almejando reconciliação, aproximando-se para um beijo de despedida, deparando-se só, alucinando patético na cozinha.

Fitando a imagem dela, sob um luar de uma noite turbulenta, mirando-o num numa expressão gentil e meticulosa. Apoiando-se sobre a pia com as mãos dele em sua cintura, perguntando sobre o dia do outro, planejando as férias e escolhendo aonde irão no próximo final de semana. Tudo em seu devido, perfeito e impossível lugar. Ele retorna ao seu quarto, escreve a última linha, desliga os interruptores e volta a dormir. Ainda atônito, ainda lembrando.

Daniel Yukon
Enviado por Daniel Yukon em 16/04/2020
Código do texto: T6918668
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