Para além da janela, ao fundo, a inundação cinza do céu.

Certa feita, alguém me disse que espelhos inauguram abismos. Não sei, mas é certo que a existência é um precipício sem indicações, onde escadas terminam de repente. Para além da existência, restam escritos risos e lamentos nas páginas soltas da alma. É, o mundo é esse palco onde o inferno de nós escarnece.

Não fui trabalhar hoje. Passei a tarde tocando com as pontas dos dedos as folhinhas nervosas de manjericão, com o olhar perdido na superfície agitada da cafeteira. Como de costume, nas primeiras aragens do meu inverno, grudo a testa na janela da varanda - meu modo de espiar o mundo que se pode esconder por detrás das paredes. Para além da janela, ao fundo, a inundação cinza do céu. Pesadas nuvens pareciam pensar exaustivamente sobre alguma coisa.

Não houve ritual sagrado, nem uma carta numa garrafa. Eram apenas pés descalços. Uma camisa branca e um cabelo mal cortado num corpo magro. Mesmo alheia ao significado do que ultrapassava a janela de minha varanda, não ignorei aquela figura porque aos seus olhos não havia ninguém ali, além de mim, é claro.

Eram passos lentos, carregando consigo desventuras, que avançavam para o murmúrio festivo do mar. Peguei-me inquieta, agora adivinhando a causa. Um olhar voltou-se contra mim. Sorri que sim, é a hora. Vi o último passo, o olhar dissolvendo na brisa. O impacto da água. O mar revolvendo em suas marés. A sombra do corpo caiu primeiro. Não gritei. Não tentei modificar o desenvolvimento daquilo.

Fiquei ali por mais alguns instantes, até que o pouco de luz se recolhesse por completo. Afastei a testa da janela, como quem caminha até a saída da paisagem, e pensei: não há nada fora do lugar. Todos os papéis se cumprem rigorosamente.

Em minha impotência, virei o rosto e me recolhi um pouco. Não, em nenhum momento pensei em lhe segurar o pulso e perguntar se não valia a pena continuar apesar de tudo. Não havia nenhuma vontade fria de resistir. Morre-se com o coração. Morre-se também com os ossos do corpo e com as carnes todas.

Quando a lua se elevou ao alto, clareando os recantos do mundo, deitei sobre as dobras claras do lençol e disse: "quando o sol voltar ao céu, vermelho e soberano, aquele terá sido eu, que também tentei tocar a orbe lacrada que é o peito".

Só na manhã seguinte, após a leitura dos jornais, fiquei sabendo sobre aquele homem naquele fim de tarde, um selvagem melancólico. Me pareceu como aquelas advertências sobre as consequências nocivas do cigarro, com imagens de um corpo sem vida, uma boca com cicatrizes e um pulmão enegrecido. Estou confusa. Não sei se via um auto-retrato contra minha vontade ou fora mesmo espectadora daquilo.

Crucificava uma mosca num palito de dente quando ouvi cochicharem na cozinha: "nenhuma lágrima". Nenhuma, repete um deles com um cigarro pendurado num dos cantos da boca. Os olhos não vertem mais lágrimas quando há flores murchas nos vasos ao redor da mesa - murmurei baixinho. Fechei a janela. Espero outro inverno.

Hellen Leandro Schommer
Enviado por Hellen Leandro Schommer em 13/04/2020
Reeditado em 16/04/2020
Código do texto: T6916333
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