Cento e onze
Os olhos vazios retornam para assombrar a mente. Olhos que em nada acrescem, senão na luxúria de uma conquista vazia e no julgamento que fazem – tal como faço em igual soma ou além – daquilo que, por mera lascívia, me fiz transfigurar. Quimera hedionda! Um pálido reflexo sem rosto da figura de um augúrio de outrora, no presente e no porvir, entretanto, atado por correntes maleáveis, porém, inquebrantáveis – o que lhe permite aproximar-se da superfície, como que para escarnecer do espectro que o sobrelevou, contudo sem que se permita libertar-se do esquife, onde há de permanecer até a ruína de um e de outro; do ideal e do desgraçado que o superou.
Ente vil trasvestido de distinto – como se o probo de que se vangloria não transportasse consigo as putrefatas culpas que ocupam o íntimo, destilando sua malícia em tudo aquilo que o envolve. E que, por aquiescência ao filósofo extremista, defensor das verdades artificiais, fantasia o mundo com cores além do espectro, mascarando, assim, os tons de cinza que, de fato, o formam, e devolvendo ao público uma fantástica miríade de matizes que cativa os olhos daqueles que o tomam pela sua fascinante efígie e não pela carne que o talhe. Homem de mil verdades, faz-se santo por heresias e sábio por falácias. Abutre cobiçoso do prestígio de que não é digno.
A dor que lhe nutre os vermes foi caçada por ti, demônio, pois adestra-te, a ti e a eles, a existir com ela. Teu tormento não rivaliza com as atrocidades que perpetra, portanto, aquiesça-se dele e o multiplique, já que somente através do infortúnio lhe é anuído auferir o gozo vicioso que anseia. Como em toda obsessão, o vulto da demanda se dilata ao infinito, tal como a paga da devassidão: a amplitude de sua avidez destina-se a ser a mesma do teu amargor. Isso fará preceder a desolação da abstinência ao júbilo voluptuoso da confluência. É tua fortuna, infausto, penar até se aprazer daquilo que almeja, para tornar a penar.
Acercado das venturas aspiradas por qualquer – e todos – os que viveram, vivem e hão de viver, optou sorver do caótico seio da dubiez à constância e mansidão do que vinha erigindo. Como a língua da súcubo serpente a seduzi-lo, o percurso bifurcou-se. Sem que lograsse determinar via mais afável, aventurou-se por ambas, e tornou-se dois. Revelou-se, de um lado, a égide perpétua da garantia de um amanhã plácido. Do outro, a efêmera vocação do deleite pelo deleite. E, no trajeto, apercebeu-se das ranhuras na égide e da frugalidade do deleite. E já não mais o cativava as estradas, uma ou outra, mas por elas andejava, não se podendo furtar de qualquer.
E por isso sofria. Apercebeu-se dos dotes que se obsequiavam a ele, mas ambos adversavam o rascunho original. Não por não se oferecerem em vasta altivez e zelo, mas por divergirem daquilo ideado prematuramente. O mero vislumbre de suas imperfeições, frente o universo litigioso que se descortinava diante de seus olhos, o fazia errar entre o êxtase e o desconsolo, independente da realidade que selecionava para si. A princípio o pêndulo se manteve estável, ora cá, ora acolá, mas o tempo, entidade suprema, tratou de bulir suas engrenagens, de modo que o dissabor só deitava-se para pequenos lapsos de euforia. E assim marchava entorpecido rumo ao soturno futuro que o esperava.
Assim galgou ao nível que conquistou. Já não mais vê. Já não mais ouve. Tolhido de qualquer sensibilidade, permanece vivo pelo simples capricho do destino. Sonhos e planos furtaram-se de sua cognição, pois revelaram-se norte à esperança e, como disse o sábio ateu, esta é a mãe de todos os males, pois só fará prolongar o seu tormento. Persevera daquilo que se lhe apresenta e esquiva-se de decisões notáveis, pressupondo um novo pesar a cada passo que lhe tire de onde habita. Não almeja a morte como solução dos revezes que criou para si, tampouco a teme ou a evita, e a ela se entregaria com prazer, se chegado o momento.