Além do ontem

A catástrofe se realizava e consumia a mim como fogo selvagem. Ajoelhado, inerte e oco. Das grades por onde passavam a luz do Sol, almejei o toque de seu calor, ergui minha mão a tentar guardar um pouco de sua presença, levantei-me para melhor vislumbrar sua radiação me presenteando cores por mais uma vez em que sua companhia me enriquece de vida.

Reuni os pedaços desconexos, montei a imagem que permanecera distorcida às horas que passavam sem solução, repeti os sons mexendo levemente meus lábios ressecados e emitindo voz rouca por entre o eco do espaço vazio. Em meu tato, senti o arder em minha pele, uma colisão de temperaturas que lutavam por dominância, estonteando-me no processo.

Não mais que meio-dia, muito menos que o meio da tarde. O horário era incerto e a noção de tempo era esvaída dos meus sensos. Pessoas entravam e saíam, não mais que meia hora, muito menos que alguns minutos. As palavras de empatia ressoavam e pude sentir paz a encontrar sinceridade me confortando e me prometendo melhoria e salvação divina.

Copos d’água no chão, uma face familiar tomando conta de tudo, lágrimas evaporadas e o aroma de chá sendo feito na cozinha. Senti-me calmo e racional, uma camada de otimismo me envolvia ao progredir de minha mente a descobrir alternativas para ver novamente a natureza verde e viva do interior cuidando de meu silêncio e me inspirando elegias ao luto.

O que está acontecendo, está acontecendo, não há mais negações.

O telefonema havia sido recenado em minha maneira de retratar o princípio o qual me arrastou até aqui. “Morta por parada cardíaca” Eu disse, “Sem dor ou sofrimento”, desta vez, disse em fidelidade ao tom do médico. O abraço dos familiares, o apoio dos amigos e conversas de memórias passadas me traziam forças para seguir meus dias desprovidos de uma presença agora impossível.

Hoje é o amanhã que parecia estar numa distância infinita, e agora sorrio ao lembrar dos momentos em que aproveitamos cada segundo de seus moldes de perfeita harmonia. Ela me vê em um lugar melhor agora, e ela ri junto a mim. Ainda atordoado, caminhei em direção à porta, em voluntária decisão de triunfo sobre a aflição que me destruía. Eu vago a procura de tudo o que existe além do ontem, além da perda que me ensinou tudo o que precisei aprender.

Daniel Yukon
Enviado por Daniel Yukon em 30/03/2020
Código do texto: T6901337
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