Quarentena

Escrevo estas memórias de tempos solitários dos quais lembrarei para sempre. Nunca na história recente da humanidade vivenciamos nada parecido. Estou longe do Brasil, longe de minha família e de meus amigos. Felizmente, tenho algumas pessoas com quem sei que posso contar e algum dinheiro guardado. No primeiro dia de isolamento, descubro que a provisão de mantimentos compreende somente a manutenção do meu corpo físico. A mente, no entanto, mostra-se vulnerável aos efeitos daquilo que se inicia como um grande tédio e lentamente dá lugar a um vazio crônico. Já não tenho certeza se ficarei na Austrália por muito mais tempo; entretanto, também não sei se poderei voltar, caso seja da minha vontade. Assim como os produtos nas prateleiras dos mercados, as certezas de nossas vidas se tornam escassas. Os aeroportos estão caóticos e os voos reduzidos. As pessoas estão assustadas e as informações verdadeiras se perdem em uma torrente de boatos alarmistas que se disseminam tão velozmente quanto o próprio vírus. Parece-me que, muito mais do que a própria enfermidade, é do terror provocado pelas pessoas que padeceremos. Ainda assim, a cidade de Sydney segue ensolarada e com uma certa vivacidade tola e irresponsável. Neste final de semana, as praias estavam às multidões; a polícia teve de expulsar os cidadãos e exigir que voltassem às suas casas. O coronavirus suscita a seguinte questão: em que medida os tomadores de decisão que governam as estruturas que movem nossas vidas estão mais preocupados com a saúde da população do que com o bom andamento da economia? Me questiono se já não deveríamos ter iniciado a etapa de quarentena mais cedo, a fim de evitar a disseminação da doença em níveis catastróficos, como foi o caso da Itália. Percebo uma curiosa e ingênua tentativa das pessoas de preservar suas rotinas de trabalho, de lazer e de consumo. Como se não pudessem acreditar que tudo isso está acontecendo e quisessem continuar a viver suas vidas de sempre. Caso enfrentemos coisa parecida no futuro, especialistas deverão incluir em suas previsões e cálculos o período de negação pelo qual a coletividade passa, como um transe que antecede o inevitável enfrentamento da realidade, que se impõe lentamente sobre nós feito uma cortina de ferro. As ilusões que sustentam nossas vidas cotidianas se revelam mais frágeis do que pensávamos, e a raça humana se coloca diante de um destino pouco luminoso, onde nada está garantido e cada dia será recebido com olhos arregalados de medo.

23/03/2020

pedro toscan
Enviado por pedro toscan em 23/03/2020
Reeditado em 13/04/2020
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