Dor
Abandonar a dor é viver uma dor diferente. A dor acompanha a vida igual a um rio seguido pelos detritos. Ora se prendem num destino ora se soltam e segue seguindo. A dor não é o destino, é aquilo que dói e parece não mais findar. A ventura interrompe por vezes a dor antes sem trégua. A dor não é a dor na barriga, não é a dor na cabeça, nem a dor do parto. Não é a dor passageira, por mais insistente. A dor está sempre ali, e a vida a distrai com um docinho. Dói tão baixinho que ouvir uma música faz bem. Dor que tem um canto, e todo encanto é bom para cobri-la de luz. Canto sempre escuro, legado ao desumano e nele o humano é abrigado. A barata não sente a dor e nem saberia sentir. Isto ninguém pode afirmar. E se a dor for tão forte assim e doer fora de uma consciência? Não doeria igualmente estremecendo o verniz da barata? E em todos os mundos que não necessitam de uma consciência para erigir-se? A consciência sabe sobre a dor e assim dói em dobro, causa até vertigem. A vida sem dor já é hoje em dia sem graça. E até parece que a dor é inventada. A que é não é. A dor é viva, e ela quer comer. O que a dor come meu Deus do céu? Pode comer a mãe, pode comer tudo quanto há. A dor faz sucumbir uma nação inteira. A dor é uma maldição que a embrulhou e a fez se perder no caminho. A dor ganhou nome, sem ter cara, sem ter figura. Angústia? Melancolia? Inferno do cotidiano? Seja lá qual inferno. A dor é uma sombra, um fantasma, o negativo que existe a atormentar. É um vento, uma poeira, uma brisa, é o cisco que incomoda eternamente. Desespero? Ah, que dor! Faz o indivíduo trabalhar feito louco! Impele outro a rezar dia após dia, numa vida reclusa, ao alcance da paz... Toca a imaginação do poeta, do artista, do filósofo, do cientista e do contador de histórias... Leva uma massa à balada, ao cansaço, à orgias, à devassidão. Dor inimiga e amiga, sem controle. Dor que destrói, constrói. É a dor do mundo, quem sabe só nossa.