Do carnaval às cinzas

Do carnaval às cinzas

Por Fernando Silva - Carpina

Pintou-se Arlequim,

Entornou um trago de aguardente velha,

Beijou mulher e filha,

Saiu em disparada,

Era segunda-feira gorda...

Desceu a ladeira, abraçou os pinguços da feira,

Cantou e gargalhou ao tom Abre Alas seguido de Aurora,

Pitou um cigarro de tabaco de mole,

Tragou saliva e cachaça pigarreando e sorrindo à todos...

A tardezinha se enveredou pelas ruas estreitas aos braços de alguns foliões embriagados, mais de alegria que de pinga...

Noite caindo, a garoa arrastou Cândido para a rua de baixo,

Lá se foi entre confete, serpentina e a Cabeleireira de Zezé, de repente já se vê a aurora de terça,

Não há cansaço, não há porre, não há tristeza...

Subindo a ladeira de abraço com uma pequena,

Cantarolando Ô Balancê atropelado por Dá a chupeta, subia extasiado de paixão, tudo alegria, tudo emoção...

Às tantas, Cândido debruça sobre o balcão da velha taberna de Doca,

Uns dois tragos meio que ao resmungo de Mamãe eu quero,

Perdeu de vista a morena, se acha fitando a porta e buscando o rumo de algum foguedo que o possa levar dali...

Um trago de Moinho Velho o põe em marcha ladeira abaixo,

Lá se vai Cândido mesmo pela ruela escura,

Dá na praça do coreto tomada de brincantes, logo está de braços abertos a gargalhadas,

A garoa não cessa, Zezinho de Noca o arrasta para o meio da folia,

Bora brincar Cancão, hoje é carnaval amanhã é só cinzas...

Noite adentro atravessando a cidadezinha,

Entre um trago e um pito, entre uma marchinha carnavalesca e uma gargalhada à toa,

Manhã de cinzas se faz,

Já não é mais carnaval,

Cândido se vê à calçada fria,

Garrafa vazia ao lado,

Sol ao rosto,

Nas ruas não há viva alma...

Subir ou descer a ladeira, o rumo é incerto,

Da euforia que viveu quase tudo se perdeu,

Volta o homem Cândido ao seu velho refúgio,

Mulher e filha à porta ansiosas,

Agora consolo se acha em suas almas que de cinzas se vestiram em espera por Cândido...

Os olhos que faiscavam alegria da alma inebriada desde a segunda-gorda,

Agora cinzentos de um cansaço avassalador,

Descansa Cândido em sua cadeira de balanço,

Balanço agora só os solavancos de Mocinha e Izabel,

Em prantos e ralhos descompassados, Cândido já não responde, a negra pele se desbota em cinza e seu rosto já esboça uma palidez sem igual...

Cândido de alma, cândido de alegria, carnaval se foi, de cinzas se tornam os véus,

Parte Cândido sem trago, sem pito, sem morena, sem filho de Noca, sem marchinhas...

Alegria há de se ver nos jardins celestiais quando por lá adentrar aquela cândida alma que passa dessa para a melhor em plena quarta de cinzas...

Carpina
Enviado por Carpina em 26/02/2020
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