Sarapião - O sujeito sem jeito

Sarapião era bicho do mato.

Cabra arretado. Sujeito tinhoso.

Vivia afastado de tudo e de todos.

Tinham dele um certo receio.

“É maluco esse velho sujeito!”

Frase comum no seu vilarejo.

Nunca casou.

Certa prima falida lá de São Paulo até que tentou.

Uma tal de Perfídia, que era filha de seu Tio Avô.

Mas Sarapião não era tão louco.

Só era teimoso. Teimoso que só.

Se cismava com alho não tinha bugalhos.

De poucas palavras.

Sem olhar duvidoso ou conversa fiada.

Não sei que cargas d’água,

vez por outra desembestava;

Num papo enredado com Jeremias,

um jumento invocado.

Todos pensavam ser o bronco

o dono daquele mascote teimoso.

Estavam errados.

Era quase o contrário.

O bicho era como um irmão,

fazia o que queria.

Muitas vezes era ele

que dava ordem no Sarapião.

Se empacava não ia.

Que esperasse o caipira,

que mudasse o humor do Jeremias.

Era bom para o bicho.

Em compensação com as pessoas

não tinha a menor atenção.

__ Bom dia Sarapião!

Dizia o padeiro com cortesia.

__ E o que pode ter de bom

quando já o começo

pagando tão caro o pão?

Respondia em protesto o matuto reclamão.

“Talvez morar longe seja a melhor decisão

pra quem tem tamanha falta de educação.”

Pensava o padeiro.

Assim, pouco a pouco, em maus termos

ia ficando com todo o vilarejo.

O sujeito sem jeito. O Sarapião.

Não era por mal, só era sincero.

Mas ninguém gosta muito de opinião

dada sem a anestesia de uma escolha sadia

de palavras e tons.

Andava descalço. Não tinha sapato.

A sola do pé parecia um casco.

Estava sempre sujo de barro.

Sarapião não ligava, até gostava.

Era o cheiro da terra onde morava.

O casaco era roto, o chapéu esfarrapado.

Tudo que vestia era remendado.

Quem não o conhecia logo pensava

que não passava de um pobre diabo.

Um pedinte qualquer a mendigar

o vintém de outrem.

Mas a fazenda do Sarapião

era a maior da região.

Tinha gado, pomar. Tinha até uma mina!

Lá brotavam pepitas daquelas douradas

que tanto gostam as joalherias.

Não era a toa que a velhaca Perfídia

queria levar o primo pro altar.

Mas Sarapião não era bobo não.

Não se fez de rogado e mandou a prima

de volta pra São Paulo.

Não era covarde o bronco sujeito,

mas aprendeu a ter medo de mulher rejeitada.

Era só ver Perfídia.

A prima virou um algoz em sua vida.

Tudo que podia ela fazia

pra ver infeliz o primo caipira.

Até da medicina fez uso a ligeira.

Mandou um doutor pra julgar se as ideias

do primo não eram meio rarefeitas.

__ Para recusar meus cuidados só pode ser lesado

esse meu parente afetado!

Fazendo um favor para amiga Perfídia

lá se foi o analista ter com o primo ermitão.

Chegou sorrateiro.

Encontrou o dito cujo em conversa fluente

com o bicho xucro que tratava como gente.

Era estranho, mas isso não podia ser tido

como prova concreta pra um louco de pedra.

__ Boa tarde Sarapião,

venho em nome de sua prima

que respeita minha opinião.

Para Sarapião não ajudou no caso

receber o doutor com o bacamarte apontado.

Ouvindo o nome da prima só imaginou o pior.

Era melhor expulsar o abestado doutor.

A contar até dez fez se por a correr.

Ria da cena: “É ligeiro o burguês!”

Satisfeito com o trote encerrava a contenda.

“Que nunca mais invadam minha fazenda.”

E o inesperado fundista,

entre passada e tropeço,

pensava aflito:

“É doido mesmo, é maluco o sujeito!”

indignado com o ultraje sofrido

fez cena na praça o médico esbaforido.

Em meio ao coreto o doutor de cabeça

explicou os perigos de um louco a solta

com sua escopeta.

__ Pensem nos seus filhos!

Gritava com drama.

E as mães preocupadas tremiam de medo imaginando a cena.

E sem ninguém entre eles que falasse sequer

algo bom sobre o homem que queriam internar;

Partiram o delegado, o doutor e o vigário

pra se fazer cumprir a justiça dos sãos.

E no fim da bagunça Sarapião

não era mais dono da própria razão.

Nada tinha além de uma sala acolchoada

no sanatório que a prima pagava.

De contrapartida ficava a mesma

ao encargo da fazenda como única herdeira.

Ela se ria e pensava:

“Tudo saiu como eu planejava.”

Mas a vilã não contava com a vingança fraterna.

Num desses passeios,

perdida em devaneios,

passou por Jeremias.

Levou do jumento um coice certeiro

que lhe rachou a cabeça.

Dando fim a malandra e seu plano de riqueza.

Sem Perfídia a bancar no hospício os bolsos,

Sarapião foi parecendo cada vez menos louco.

Foi questão de tempo e de boas maneiras

que recebesse a soltura de sua cela.

De volta a fazenda e a seu jumento fiel

hoje Sarapião não é tão radical.

Cumprimenta a todos no vilarejo.

Não quer voltar pro lugar de onde veio!

Foi tamanha a mudança ocorrida no velho

que elogia as senhoras e até os bebês ramelentos.

Mas certas coisas não mudam.

Ainda torce a cara quando paga o pão.

“Padeiro ladrão!”

Mas antes que expresse em palavras o vil pensamento,

lhe puxa a orelha seu nobre jumento.

Sarapião. Vê se tome jeito.