Chuva que sou
Chove nas folhas que molham. O chão escorre a água e a cidade cala. Somente a chuva fala. Os carros se curvam ao mandado do céu e somos criaturas de um universo que comanda os segundos além da hora. Ontem fez sol naquele velho sertão. O mandacaru ardeu no solo árido e as vacas magras pastavam como entidades do século passado. A velha casa de Adobe resistia ao tempo e se dizia que ali moravam famílias centenárias. Mas na cidade de hoje chove e ninguém dançou pedindo sua vinda. Caiu assim bruscamente. A cidade se ergue imponente, tão concreta, tão despida de beleza, que a chuva cai, mas a contorna. A cidade dói não sei porque. A imagem da minha janela me conforta. E ver a chuva caindo é tão aprazível que sinto alegria em viver. Em ser. A chuva é tão antiga. Observando suas gotas me sinto também antinha como se estivesse aqui há bilhões de anos. Sou gota de chuva escorrendo no asfalto. Sou também essa cidade imponente demais para minha alma tão alheia a concretos. Eu fui criada junto às árvores do cerrado. Acostumei-me com seus caules contorcidos e muito me identifiquei, pois nunca tive uma alma em linha reta. Ser eu é uma longa história, a chuva bem a conhece. Chove na cidade. Estou bem, tranquila, escorrendo do céu.