Prosa de ajuste

I.

Boas notícias

não trago.

Não espere

afago, complacência.

O que se almeja aqui

é a consciência democrática.

Em pleno Brasil

dois mil e vinte

- de um futuro imaginário -

o açoite, o acinte,

ainda mira os matizes da pele.

Zele pelo bom senso,

sejamos razoáveis.

Cá não se farão

versos afáveis,

sequer rondas

de embuste.

Não se assuste,

meu caro gajo.

Ajo em legítima defesa.

Esta prosa posta à mesa

tem aroma de ajuste.

— Faça-se sem delongas

pois o rebuceteio!

II.

Sobreveio a amnésia.

A desmemória é sintomática.

É de conhecimento a tática

da deslembrança.

Ciquenta e sete milhões

de ameríndios.

Doze milhões e quinhentos mil

africanos.

Que fizeram os ufanos

com este povaréu todo?

O céu e o mar nada dizem.

Suponha você o desfecho.

Ressoam ainda e porém

as vozes sequestradas

em porões de navio

e no lume fugidio da floresta.

Contesto a data e a festa

para anunciar a novidade.

A idade geológica

das Américas ultrapassa

qualquer gana invasora.

As civilizações preexistentes,

as gentes multiplicadas

pelo território

faz, decerto ilusório

o conceito da descoberta.

III.

Incomoda

conjurar palavras

para desdizer

o já dito.

Não é bonito

tampouco fácil

remontar as verdades.

Caco por caco,

naco por naco,

haveremos sim de reformar

o vaso ancestral

da História.

— Mas que história é essa?

Explico: alvacenta.

De cor esbranquiçada,

querendo ofuscar outras.

Castro Alves anteviu,

tingiu com tinta

o papel eivado de dor.

Desamor tanto e tamanho

a reduzir etnias

a gado, rebanho.

— Apagar este borrão

co'a esponja do vil esquecimento?

— Não!

IV.

Lamento o avesso reinante.

Cabeça virar adorno

de pescoço?

Tá osso, meu chegado.

Pela benesse,

pelo ouro,

o couro do preto

foi rasgado.

Por espelhos e mixarias

o índio, dono das terras daqui

foi usurpado.

— Nasceu! É um menino!

— Que nome vamos dar a ele?

— Jeitinho brasileiro.

— Gostei. Maneiro!

Veio ao mundo esperto que só,

decerto, seria sucesso

da corte à plebe.

O Brasil Colônia aderiu.

A República Velha aclamou

e de lá para cá, cresceu,

se agigantou.

Popularizou-se,

desde então,

uma lei não inscrita

na constituição.

— Mas que lei é essa?

— Lei de Gerson.

— Tá de brincadeira, confessa!

— Não.

V.

A vantagem é mãe do privilégio.

Sortilégio de muitos,

abastança de alguns.

Ponho-me a procurar

um doutor de cacholas,

aquele que me fará

novamente são.

Há dias,

caro amigo Gonçalves,

ouço vozes de estribilho

que não me soam estranhas.

Não me custa cantarolar,

gorgeá-las para o regalo teu.

"Minha terra tem loucuras,

e não tem mais sabiá

os psiquiatras que aqui clinicam,

não clinicam como lá".

Não me parece original,

mas orna horrores

com estas épocas, com estes dias

não é mesmo, Gonçalves?

De qualquer maneira,

não devo me furtar

às divagações no divã.

Paguei adiantado pelas sessões.

É que meus senões são muitos

e aguardam resolução

mais que imediata.

Pedro, não se faça de morta,

não banque a caricata,

não podia ter feito

o que fez: navegar sem rumo.

Sua esquadra roçou as costas

de uma pobre moça. Vera.

E já nas terras de Vera,

fincaram a cruz dos jesuítas.

— Mas teve o consentimento dela?

— Não.

— Menina, isso é caso de polícia.

VI.

E qual polícia ou justiça

se faria eficaz

contra aquela tomada

deveras contumaz?

Estava feito. Daquela forma.

Daquele jeito.

Surgiram, desta feita,

os mamelucos, os mulatos.

Eram muitos, em demasia.

Não ficava bem nos retratos

tal gente preto-pardacenta.

Pelos brios patrióticos,

a imigração europeia

foi sacramentada.

— Agora sim, a luz,

a claridade e a brancura.

Aos clarialvos o direito

a posse e os estudos.

Aos demais, descaso.

O atraso como sentença

a quem se pensa igual,

ainda jaz atual

aos encardidos, brutos

embrutecidos pelo cinismo,

desfaçatez que de tão clara,

enturva a visão, cega.

— Ressentimento é tão brega, sabia?

Seja cristão. Soa sempre

e melhor o perdão.

— Apagar este borrão

co'a esponja do vil esquecimento?

— Não!

VII.

É chegada a hora de epilogar

em algum lugar entre

o picadeiro e o inferno.

O caos triunfa

e segue hirto, hodierno.

Este, que seria o país do amanhã

morre um pouco a cada dia

pela voz dos noticiários. 

Os agentes funerários festejam,

se alimentam da indignidade

de um povo heróico.

O choro é canção cotidiana,

é salário bacana no bolso

dos homens de fino traje.

O rigor do ultraje

já fez fama internacional.

O leite derramou.

A festa acabou.

Inês (de Inhaúma) é morta!

Era preta, era índia?

Era só mais uma.

— Canalha, calhorda!

Não há insulto que atinja

a moral da granfinalha

quando falha a chance

do voto.

Tarde demais.

Os devotos do ódio

não desejam a cura

e rechaçam a vacinação.

Avisa pra geral:

agora, a raiva é oração.

VIII.

O amador preside

e não ama a ninguém.

A novela na tela da TV,

exibe o naufrágio do amor

para encanto e torpor

do público.

— Funciona!

IX.

Enquanto isso,

nos regabofes do império,

eficaz é a gargalhada

que revive de boca em boca,

na oca fala dos duques

e seus truques de imortalidade.

A família, a linhagem,

a dinastia que perdura

varando os séculos,

lacerando sonhos e vidas.

Descendem de Midas

esses confrades, abades

e pastores.

Todos atores

de uma peça mesquinha

cujo o mote se condói

apenas de si mesmo.

Não à toa, nem a esmo,

a retumbância da riqueza,

se bem observada

cresce afilhada

da ilicitude.

— Estude sempre e mais.

— Tenho preguiça.

— Então não me amole, mundiça.

X.

Não sem própósito, nem razão

o estado das coisas

é pleno em omissão.

A quimera dos dizeres

de um belo hino

não faz jus ao desatino

dos nossos cantantes.

Triste é o fim do carnaval

que se acaba na quaresma.

— Não faz mal, não faz mal.

— Toca o barco, Policarpo.

Toca o barco.

Felix Ventura
Enviado por Felix Ventura em 03/02/2020
Reeditado em 03/02/2020
Código do texto: T6856922
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