Carta ao eu pretérito
Querido eu pretérito, neste instante, já não somos mais iguais ao quanto já fomos antes e a cada verso que te escrevo, nos tornamos ainda mais diferentes do que agora somos. E mesmo com esse contínuo distanciamento, carrego tanto de nós dois que já me desconheço do quão semelhante contigo nesta despedida eu me pareço.
Querido reflexo do espelho, eu deste lado, agora te vejo e pelo lado avesso me vejo indo para a direção oposta, lendo-me o adverso com o mesma velha e lúgubre prosa e também o medo de nunca mais me ver pelo outro lado de mim mesmo, com a mesma incerteza de todos os dias que me surpreendo.
Não te deixo ouro, nem mirra e nem incenso. Não te deixo legado que se estenda pelas eras, além dos nossos erros e de alguns poucos e pequenos acertos. Não te deixo nada além da experiência de tê-lo vivido e as dúvidas muitas do que ainda seremos. Não te deixo completamente, por ser incompleto de mim mesmo e assim sigo em frente, ausente do meu próprio paradeiro.
Não te construí uma casa bonita, nem te levei para ver as maravilhas do mundo inteiro, por muitas vezes te tratei pior do que aos nossos inimigos e mesmo assim, eu te escrevo para me despedir e para te reencontrar na mesma fração de tempo que se encerra agora no que resta de você e que fica apenas para mim.
Não se magoe demais comigo, e se for possível, me perdoe pelas falhas que cometemos, pelas gafes que fizemos, pela existência que dividimos, pelos sonhos que juntos perdemos, pelos medos que se alternaram de lágrimas em risos, vise e versa, pela nossa luz e pela nossa treva, pelas coisas fugazes que deixamos pelo caminho.
Eu sigo naquela direção, oposta a tua posição, nos separamos nessa inevitável bifurcação e que nos levarão a distintos caminhos, porém, aguardo o dia em que finalmente nos reencontraremos nos círculos infinitos dessa giratória e imprevisível esfera que voga pelo espaço vazio e infinito e que a ermo nos leva como uma nave pelo universo e pelos tempos que se desdobram e se recolhem em si mesmo.