Despertar da aurora espiritual

      Alguns minutos antes do abrir de olhos da aurora, um homem conversava com sua sombra absorto em si mesmo:

    - Escute. Está ouvindo? Aqui, lá, ontem, amanhã, as cores, o sons, ecos no abismo. Todas as coisas caem nas profundezas, e de lá retornam aos meus ouvidos. Tudo nasce e morre no silêncio. Oh, eternidade, abismo de luz!

       Cala-te, sombra! Ouça, já que não pode escutar - os pássaros cantam, o galo carcareja, mas os sons não viajam pelo espaço, não existe tempo. Tudo nasce e morre no silêncio. Oh, eternidade, abismo de luz!

       Psiu! A aurora está vindo! Cala-te, escute! Vede como a vida canta à Alegria, é a saudação ao representante do Deus vivo. Saudemos também. Anda! Curva-te, seu anão de jardim. Ninguém ensinou-lhe os bons modos? Lá está Ele. Psiu! Não quero saber. Cala-te, anão!

       Segura tua língua um instante, pelo menos neste instante sagrado. Para nós, seres glaciais, não há bebida melhor que a luz que derrama de seu cálice; não é como banhar-se num lago de leite morno? Embriaga-te de teu supérfluo, pois só ele dá sem ver a quem, não como os homens, que dão o que não tem; ele dá porque têm demais.

       Mas é ao meio-dia, quando todas as sombras se encurtam, que o mundo alcança sua perfeição. Aproveite para beber de seu mel, pois logo será a hora da purgação de todas as sombras. A hora suprema em que todos os demônios são obrigados a se curvarem perante o poder do Altíssimo.

    E o mal?!? O mal não é uma objeção à perfeição. Se existe mal no mundo é porque Ele quer, pois deu a todos vida para viver.

      Oh, minha sombra, não seja tola! Não queira julgá-lo, Ele está além de bem e mal. Tu mesmo, que nada mais faz senão alimentar a desgraça neste mundo, existe porque Ele quer, porque viu necessidade em ti. Mas não se engane com estas palavras;

tu não é o outro lado da moeda, pois a luz está acima da escuridão. Tu és teu servo. Assim Ele quer, assim sempre será. E ai daquele que quiser destruir o mal deste mundo! Todas as coisas foram feitas para perpetuar o desequilíbrio, num jogo perpétuo eterno de reconciliação e afastamento; pois da luta dos opostos é que surge a vida.

      A vida é uma dança, amigo - não sabeis? A dança da guerra. Depois da última badalada celestial, então todos os demônios saem dos escombros, e o mundo volta ao jogo de luz e sombra. E mesmo quando, após o seu declínio, precipita a noite eterna, a luz desce com ele, e as estrelas acendem no abismo. Somos nós que ficamos nas trevas, pois a noite tem de cair para Ele levar sua luz a outros cantos do mundo".

E tendo assim dito, seu rosto transfigurou-se-lhe; podia se ver em seus olhos uma profunda tristeza que emudeceu seus pensamentos; perdera-se da luz, então deu voz à sua sombra:

    - Não falemos mais, já perturbamos demais o sono do mundo com nossos sonhos. Falar é uma bela maneira de nos esquecermos e nos enganarmos. Mas não será tudo uma ilusão? Não estamos todos sozinhos, abismos entre abismos?...

Fiódor
Enviado por Fiódor em 04/12/2019
Reeditado em 04/12/2019
Código do texto: T6810543
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