Carta para não enviar

Escrevo-lhe esta carta que nunca chegará em vossas mãos, pois tu não existe. Existe apenas para mim, na minha ideia de ti...

Sou e serei sempre solitário, um errante vagando pelas sombras da realidade. Tudo que amei, amei sozinho, à minha maneira, amor único, exclusio. Amo-te com a mesma ternura que sinto ao ver as flores, o céu; sem desejos de posse, pois sou incapaz de possuir qualquer coisa. Se não sou meu, se nem mesmo me possuo, como posso possuir-te? Mas, à parte isso, já passamos longas noites em meus sonhos conversando, brincando como crianças, instigando-nos os instintos primitivos, para depois furgirmos de nós mesmos, correndo pelas ruas de Lisboa, rindo, quebrando o silêncio da noite.

Meu amor por Ti é imaculado, inocente, amor de criança. Possuir-lhe o corpo, que valor isso teria? Possuir-lhe a alma não posso. Possuir sua doação, não quero. Apenas mancharia a brancura dos meus sentimentos.

Quando imagino-lhe com outro, irrito-me - sofro. Mas não se engane, eu sofreria da mesma maneira se descubrisse, no desenrolar da história, que minha personagem preferida do romance fosse casada. Porque eu não amo você, minha querida. Amo tão somente a ideia que faço de você. Não são seus gestos, suas atitudes, sua voz doce que conquistou meu coração; sou incapaz de sair de mim mesmo para ser tocado por alguém. Eu vivo em meu próprio mundo. Sou só. O mundo externo é, para mim, um sonho no qual também estou sonhando; cada pessoa em minha sensibilidade é um outro universo transcendente, distante, impossível de conhecer e sentir. Para além dos meus sonhos Tu não existe senão como paisagem onírica, assim como meu corpo, meus sonhos e eu... O engano está na linguagem, no entendimento. Não há nada por trás da Vida. Tudo está sozinho...

Mas não me tome por um doido - por mais que eu assemelhe a um; eu não nego a existência de vosso belo corpo, de seus cabelos dourado ruivo como a aurora, apenas não sei ser, não sei me iludi; não sei mentir; sou sincero demais para que Tu, do alto de sua graça, possa compreender-me.

Meu Anjo, meu sonho de ternura, eu só conheço a alma, a minha alma, que não é minha mas me foi dada para eu sonhar-me minha. E o sonho não se partilha. Sonhamos sozinhos...

Ó, meu amor, eu estou para sempre perdido de você, eternamente desconhecidos como as estrelas e a terra! Este corpo que seus olhos vêem não sou eu; eu não sou eu, sou qualquer coisa que não é "coisa", centelha onírica, paisagem sem contornos, céu sem limites - Um Tudo cercado pelo Nada.

O que me entristece é não ser compreendido; tristeza injusta - eu sei -, pois não posso querer que as pessoas vejam o que eu vejo. Eu não sou um homem comum digitando estas palavras afim de expressar sentimentos. Que importa expressar meus sentimentos! Eu não suporto essa arte do narcótico! Não escrevo para matar tempo! A Arte é Vida vestida de estrelas, meu amor. O universo é uma metáfora. Eu despertei em meio a esse sonho para dar continuidade à história, mas por amor da verdade, seja lá o que isso signifique, eu não tenho mais o direito de me iludir e expressar-me em linguagem comum.

Somos textos. Morrer é um virar de páginas - a história continua, mas não o texto...

Fiódor
Enviado por Fiódor em 29/11/2019
Reeditado em 05/12/2019
Código do texto: T6806636
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